sábado, 2 de maio de 2020

Amor

A azinhaga dividia-se, mais ou menos a meio do percurso, em dois carreiros estreitos e cheios de socalcos. A tradição determinava que o "trânsito" se fazia sempre pela direita, o que significava que uns vinham pelo lado nascente e outros regressavam pelo lado poente. E toda a gente cumpria a regra, não escrita, mas por todos aceite.
O pedregulho que ficava no meio e fazia a divisão era impenetrável. Enorme, muito liso e normalmente com verdete da humidade e do pouco sol que apanhava, não admitia veleidades mesmo a quem tivesse muita agilidade e vontade de descobrir.
Do lado poente, as vinhas perdiam-se de vista, enquanto que do nascente, o mato, os castanheiros, as silvas e, lá mais ao fundo, os pinheiros mansos, formavam a paisagem que, mesmo de dia, não deixava que a vista se lhe entranhasse.
Era já noite e o medo da escuridão obrigava à correria, mesmo com o risco de algum tropeção pôr o nariz a sangrar. Os barulhos que se ouviam eram os do costume: o piar de alguma coruja, assustada, o canto do melro que fugia do galho onde se preparava para dormir, o mio de algum gato por ali perdido, à procura de achamento ou de chamamento.
De repente, um guincho estridente ...
- Não faças barulho, sussurrou uma voz grave.
Todos os sentidos ficaram alerta. O som tinha vindo do outro lado. O que será? E se me vêem?
A curiosidade era forte e o medo não era menor. Já sem correr, caminhou o resto do carreiro e, no final, fez o inverso.
De novo o som do guincho ou do grito, não conseguia identificar ou o medo toldava-lhe a vista e a audição. O mato era denso e o carreiro estreito. Pé ante pé, encosta à árvore, cuidado com as silvas, olha a pedra, não tropeces, não há cobras nem sardões, tudo dorme. Abre os olhos.
Umas silvas pisadas, uns fetos no chão, alguém por ali tinha passado há pouco e o destino não era o carreiro. Sobe a árvore, é mais fácil. E foi. Lá ao fundo, na negrura da noite e sobre uma "cama" da natureza, o casal rebolava ...
Foram namorados e casaram, não um com o outro.

2 comentários:

Anónimo disse...

Olaaaá!

casulo disse...

:) belo texto!