terça-feira, 12 de maio de 2020

Fanfarrão

Chegava sempre a grande velocidade e arrumava o carro com uma espécie de pião, fazendo chiar os pneus. A porta do automóvel era fechada com estrondo, para que toda a gente olhasse a "bomba". Não havia meia dúzia na cidade e, daquela cor, era único.
Falava pelos cotovelos e antes de obter resposta já engatilhava outra pergunta.
- O patrão ainda não desceu?
- E a senhora também não?
- Quem me tira o café?
- E os bolos já chegaram?
- Vou eu tirar, que ainda sai melhor. A Máquina conhece-me.
Entretanto, já estava atrás do balcão, de volta da máquina, italiana, para lhe sacar o café da manhã. O bolo de arroz no prato, de papel tirado e pronto a ser comido.
Sentava-se à mesa, deliciado, a aguardar a chegada de um dos patrões, para pôr a conversa em dia. Se tardavam, ei-lo a fazer o percurso inverso e, no caminho, a fazer a pergunta ao abastecedor, sem esperar a resposta.
- Já cá esteve alguns dos meus carros hoje? Atende-os bem, olha que eu sou um grande cliente e pago-te o ordenado.
Abria a porta do bólide, amarelo claro, fechava com estrondo e voltava, fanfarrão, de peito aberto e olhar penetrante, como se quisesse despir todos e adivinhar-lhe os pensamentos.
Tinha, pelo menos, um ódio de estimação. Dizia-se que tinham sido grandes amigos, mas agora nem se podiam ver. Coisas de saias ...

O outro tinha um carro da mesma marca, preto. Era discreto, entrava e saía sem qualquer exuberância. Se o vislumbrava, dava meia volta e voltava passado um bom bocado.
O carro preto estava estacionado, a aguardar a vez de entrar na estação de serviço para lubrificar, mudar o óleo e lavar, lavagem completa, interna e externa. Seria um serviço demorado, mas o dono só o viria buscar no final do dia e trouxera-o bem cedo. Podia-se ir fazendo, nos intervalos em que não houvesse outros clientes.
Pouco passava das nove, o bólide amarelo entrou na rodovia, rodopiou chiando e ... com estrondo, bateu na traseira do preto.
Alarme geral. E agora?
Branco, nervoso, dirigiu-se ao patrão que, alertado pelo barulho, tinha assomado à janela do primeiro andar.
- E agora? Distraí-me e tinha logo de ser neste ...
Bem perto havia um bate-chapa e o pintor também não era longe. O patrão conhecia-os bem e, daí a pouco, estavam os "médicos" de volta da "doença".
- Eu pago tudo. Não lhe digam nada!
Durante algum tempo não houve velocidades nem chiadelas de pneus e a altivez desvaneceu-se bastante. 
Depois, as fanfarronices voltaram. O tempo lava tudo ... 

1 comentário:

Anónimo disse...

Uma história de cabelos brancos. Identifico o local. Fanfarrões há muitos!