terça-feira, 10 de novembro de 2020

A forja

Até o carvão era especial. De hulha, comprado, vinha em sacas grandes, de serapilheira, e durava mais ou menos uma semana. A oficina era de tamanho reduzido, dava para o pátio, tinha uma bancada na entrada, o fole e a braseira lá ao fundo, a janela ao lado, sempre mascarrada de fumo e resíduos. A bigorna ficava logo a seguir à bancada, bem perto do calor da forja.

Tarefas: fazer ferramentas novas e manter as antigas em boas condições para o trabalho. E por lá se faziam enxadas, sachos, foices, gadanhas, podões, forquilhas e tantas outras, que haveriam de ser utilizadas pelos trabalhadores nas tarefas agrícolas de todo o ano.

A braseira era acesa todas as manhãs, sem grande dificuldade. O lume permanecia do dia anterior, ainda que brando, afrouxado e sem se notar. No final de cada dia era tapado com carvão novo e assim dormia. Mal o fole era accionado, à custa do braço, claro, surgiam as primeiras faúlhas e, daí a pouco, a temperatura já permitia entalar no carvão a peça que se desejava trabalhar, levando-a ao rubro. Depois, o martelo, a bigorna e a habilidade do ferreiro faziam o resto.

As peças habituais não suscitavam problemas e a sua realização era rotineira, com as marteladas a acontecerem quase sem olhar. O nervosismo, a exigência e a habilidade saltavam quando o pedido era mais elaborado, esquisito e vinha de quem mandava: uma ferramenta original, adaptada às necessidades, uma cabeceira de cama, uma varanda, uma vedação bonita, uma guarda de lareira, uma armação para o vaso da sala verde ...

- Não têm nada que fazer...só sabem chatear. Nunca fiz isto. Só me dá vontade de os mandar à .... 

E vinha um rosário de impropérios, com todas as letras, se não havia patrão ou senhora por perto. Puxava a onça do tabaco e o livrinho das folhas do papel. Encostava-se à bancada, enrolava o cigarro com toda a calma, coçava a cabeça levantando o boné, pensava e

- Sabes para quando é que é preciso?

- Dia tal ... 

- Vou ver, mas não prometo!

A peça aparecia, perfeita, e normalmente antes do prazo. 

2 comentários:

Ads disse...

Excelente o texto. Como sempre.
Quando em pequeno passava férias numa aldeia da Beira também apreciava o trabalho e a mestria na execução. Hoje nada resta. Apenas a lembrança.

Anónimo disse...

Outros tempos. Boa memória.