domingo, 8 de novembro de 2020

Língua

As  viagens  são assim, meu caro amigo, sabemos
do seu propósito apenas depois de regressarmos. 
Mia Couto
O mapeador de ausências

Por força das circunstâncias do trabalho paternal, conheci a cidade do Porto ainda bastante novinho e antes de visitar a capital.

As viagens, e foram várias, eram sempre uma aventura, com o caminho quase todo percorrido de noite, na maior parte do tempo a dormir enrolado na manta e a ser acordado com o clarear do dia, já quase a atravessar o Douro, pelo tabuleiro superior da Ponte D. Luís. As obras da Ponte da Arrábida já estavam a surgir lá ao fundo e, mal se avistavam, surgia a explicação, 

- qualquer dia, será por ali que passamos o rio.

A travessia, no regresso, era efectuada pelo tabuleiro inferior, para que os olhos se espantassem com a altura da ponte e houvesse a sensação, estranha, de que, lá por cima, estavam carros a passar e nós também por lá tínhamos passado, bem cedo. O armazém de destino era na Rua Justino Teixeira e nele havia muita gente a trabalhar, descalça ou com tairocas. Falavam muito, e alto, e tinham sempre uma graça, com aquela pronúncia tão esquisita, para dizer ao puto que tinha bindo lá de vaixo. Como acontecia sempre, serviço terminado e regresso empreendido de imediato, que a jornada era longa e ainda havia a paragem para reconfortar o estômago, nessa época sempre carente e nunca saciado.

O restaurante escolhido foi o de Vendas de Grijó, terreola que, naquele tempo, já era bem fora da grande cidade. Julgo que se chamava Atlântico, mas não garanto. Lembro-me, sim, de ser num primeiro andar, ter muitas mesas e uma menina de avental a trazer a comida, sempre com um sorriso nos lábios. O prato do dia era língua de vaca estufada, com ervilhas. Não me recordava de alguma vez ter comido língua de vaca, estufada ou de qualquer outro jeito. Lembrava-me, sim, de muitas vezes me perguntarem

- o gato comeu-te a língua?

E de isso me perturbar bastante. Comi. E soube-me bem. Mas foi sol de pouca dura. Não passou muito tempo até surgirem primeiro, as náuseas, depois, suores frios, a seguir, dores na barriga. E houve carga ao mar, uma vez, duas vezes, várias vezes. Andavam-se meia dúzia de quilómetros e

- Pai, pára

Uma garrafa de Água das Pedras, num café habitual da Tocha, trouxe algum alívio e permitiu o resto da viagem sem novas paragens. O cházinho da mamã haveria de completar a cura.

Nunca mais comi língua, de vaca ou de qualquer outro animal. Ainda hoje me sinto agoniado só de pensar ... 

1 comentário:

Anónimo disse...

Adorei o teu texto de hoje. Saudades...