segunda-feira, 26 de abril de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

Não conhecia e nunca tinha ouvido falar do autor, William Melvin Kelley, nascido em 1937, em Nova Iorque, e falecido em Fevereiro de 2017. Fui sensível à publicidade do "gigante perdido da literatura americana" e comprei. Vou a meio de uma história sobre escravos e senhores, racismo e exploração, que me tem entusiasmado pela história em si e pela escrita escorreita. Deliciei-me com a descrição da "aula" do menino para aprender a andar de bicicleta. O regresso a casa do senhor e do servo trouxe o costume, nada agradável para o "professor". Fica aqui uma parte da aula ...

(...) O crepúsculo já pendia sobre as colinas e a força do vento era cada vez maior. Tinham tentado vezes sem conta.
- Será melhor que regressemos a casa, Dewey. 
- Só mais uma vez, Tucker, se fazes favor. Vá lá.  
- Vamos embora, Dewey, já sabe que o seu pai não ficaria contente se lhe atrasássemos o jantar. 
- Mas TENHO de aprender, Tucker. 
Sentiu lágrimas quentes no fundo dos olhos que talvez já brotassem, queimando-lhe a cara, porque Tucker olhou para ele e assentiu. Depois ajudou-o a montar, segurou com força o selim para que a bicicleta não tombasse e começou a empurrar. Dewey tentou sentir a máquina e, quando lhe pareceu que tinha conseguido, voltou-se para dizer a Tucker que o soltasse.
Tucker já não estava ali. Tinha deixado de correr sem aviso prévio e Dewey seguia sozinho, rolando, cavalgando, deslizando, navegando, voando sozinho, e sentiu a bicicleta em equilíbrio sobre estreitas rodas brancas e o orgulho que o inundava. E subitamente o medo surgiu do nada, um pânico escuro vitrificou-lhe os olhos e tapou-lhe os ouvidos, quase o impedindo de ouvir o que Tucker gritava:
- Siga a direito! Vire agora! Siga a direito!
Mas a confiança já o tinha abandonado em pequenas gotas oleosas; estava a perder o combate contra o insubmisso guiador. O pavimento escuro veio ao encontro dele, esfolando-lhe os joelhos, mas desmontado da bicicleta, de novo a salvo em terra firme, não sentiu dor e estava mais orgulhoso que nunca de si mesmo.
- Conseguiu! Conseguiu! Conseguiu!
Tucker correu até ele, levantou-o e deu-lhe uma palmada no ombro; dançaram em largos círculos ao redor da bicicleta. Tucker apertou-lhe a mão, abraçou-o, chegou mesmo a beijá-lo, e gritaram e vociferaram até ficarem cansados e roucos.
Depois empreenderam o regresso a casa pela estrada direita às escuras, com as caras iluminadas pelos faróis dos poucos veículos que passavam.
- Tucker, ensinas-me a arrancar sozinho?
- Quando tiver aprendido a parar sem cair.
- Tucker, ensinas ...? 
(...)
Quando pensou mais tarde nesse dia, Dewey apercebeu-se de que Tucker já devia saber o que aconteceria quando aceitara ficar. Foi a ele que atribuíram a responsabilidade, era ele que devia ter em conta as horas e não o tinha feito, ou assim parecera ao pai de Dewey, que falou a esse respeito com John, que por sua vez deu instruções à nora para que administrasse um castigo memorável. E por isso nessa noite, enquanto jantava, Dewey ouviu os estalidos da correia contra as nádegas do Tucker.
Mais tarde, Dewey contou ao pai que tinha aprendido a andar de bicicleta.(...)

Um tambor diferente
William Melvin Kelley
Quetzal (2021)

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