sábado, 10 de abril de 2021

Mentira

Corria o primeiro ano da década de setenta do século passado e as rotinas eram poucas e muito circunscritas.

- Há festa em ... e hoje o baile é com o Conjunto ... Vamos lá?

Uma colecta para a gasolina rendeu os 20$00 necessários para a viagem - cada litro da normal custava 5$30 - e quatro litros chegavam para quase 50 quilómetros. Não era tão longe ...

O empregado da bomba (nessa altura havia empregados nas bombas) ouviu, a brincar e entre risota:

- Ponha 20 paus para atestar ...

E lá foram quatro mariolas, numa noite de sexta-feira, à procura de música e da bailação. Havia muita gente, barulho, leilões para ajudar nas despesas, quermesse, muito vinho, já algumas bebedeiras, apesar de pouco passar das dez da noite. A música ainda era gravada e o conjunto preparava-se, no palco, para começar a tarefa de fazer bailar toda a gente, novos e velhos, que "só há festa uma vez por ano".

As meninas sorriam, a aguardar o convite feito com discrição. As mães controlavam o par e assim que as filhas se encaminhavam para o centro do arraial, seguiam o mesmo caminho, dançando umas com as outras, bem perto, para evitar as "indecências".

De repente, qual furacão, o homem surge a espumar de raiva e dirige-se a um dos do grupo. Todos os olhos caíram sobre ele e a menina, seu par.

- Larga! A minha filha não dança com "gajos" casados.

E, palavras não eram ditas, o braço forte puxou a filha e levou-a, apartando o par, sem ouvir a explicação dada entre dentes, com alguma aflição à mistura e um rubor na cara que quase parecia a camisola do Benfica:

- Não me conhece de lado nenhum ...

- Desaparece, antes que te faça a "tromba" num bolo!

O  conjunto parou de tocar. A multidão encarou os intrusos com ar de poucos amigos. A saída foi feita "de fininho", pela "esquerda baixa" e a festa deve ter continuado depois, sem valdevinos a perturbar. Já bem longe, uma paragem para recuperar o fôlego e controlar o medo e as emoções, e descobrir a origem do desacato.

- Estavas a ir longe demais? Ou a apertar muito?

- Não. Até estava a conversar, a dizer que era a primeira vez que vinha à festa e que a menina dançava muito bem.

- Mas o homem conhecia-te, de certeza.

- Nunca o tinha visto.

A entrada no café trouxe luz e mostrou a razão evidente da bronca. A aliança tinha sido escondida no bolso, mas a marca no anelar da mão esquerda traiu.

A mentira tem perna curta ... mesmo a bailar! 

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