sexta-feira, 3 de março de 2023

A ver passar os comboios

Miguel Sousa Tavares é, para mim, de leitura obrigatória, quer como colunista quer como escritor. Na sua crónica, no Expresso de hoje, traz nota do que era notícia há 30 anos, transcrevendo um seu editorial da altura, ao qual eu acrescento, da minha lavra e com conhecimento de causa, que há 50 anos, a automotora que circulava na linha do Oeste a uma velocidade "estonteante", proporcionava uma viagem de quase três horas da capital às Caldas, o mesmo que hoje demora, com uma vantagem: havia mais horários.

As centenas de pessoas que, todos os dias, se deslocam para trabalhar e estudar em Lisboa, continuam a ter de utilizar os autocarros altamente fomentados na cavacada e mantidos pelos que se lhe seguiram, não perdoarão a inépcia com que foi tratado o seu futuro, quando toda a Europa há muito apontava o caminho certo.

"(...) Em Março de 1993, há exactamente 30 anos, a revista "Grande Reportagem", de que eu era director, saiu com uma capa cujo título era "Os comboios também se abatem". Lá dentro vinha um extenso trabalho documentando o que estava a ser a paulatina destruição de uma empresa e de todo um sector fundamental para o país, cuja estrutura demorara gerações a pôr de pé e que estava a ser liquidado pela aposta saloia no betão, nos combustíveis fósseis e na desertificação do interior. Fui ler agora o que então escrevi no editorial desse número da "Grande Reportagem" - repito, há 30 anos:

" Em nome da rentabilidade económica, esforça-se para fazer compreender às populações do interior que uma camioneta da Rodoviária em vez de um comboio é o progresso. Enquanto em toda a Europa e nos Estados Unidos o transporte ferroviário está a ser recuperado como opção prioritária, entre nós todos os anos se encerram linhas, se abandonam populações, se deixam cobrir de mato e de nostalgia aquelas belíssimas estações do interior que custaram o esforço e o dinheiro de gerações para construir. E, apesar disso, os prejuízos da CP continuam a acumular-se ... A rentabilidade económica não é fechar linhas, abandonar património, contribuir para o isolamento das populações e para a desertificação do país ... É, por exemplo, a modernização das principais linhas (Lisboa-Porto e Lisboa-Algarve), exigir que não se continue a demorar três horas e meia a ir de Lisboa ao Porto ... No fundo, o que está em causa é, como sempre, uma questão de cultura: o que leva a CP a fechar linhas do interior é o mesmo que leva o ministro da Agricultura a propor que, em vez de fazer agricultura, se plantem eucaliptos; é o mesmo que leva as Câmaras Municipais a achar que o progresso consiste em urbanizar tudo o que ainda não foi estragado ... Nunca houve em Portugal um poder tão arrogantemente inculto, tão incapaz de pensar o país para além de uma simples lógica de merceeiro suburbano."

Lidas hoje à distância de 30 anos, estas palavras doem-me duplamente: não sei se fui eu que envelheci em vão ou se foi Portugal que envelheceu sem sair do mesmo sítio. Mas é incrível como os comboios continuaram parados no mesmo lugar e essa empresa pública que é a CP hoje é sinónimo de Crime Público continuado, tendo apenas acrescentado às nossas contas mais uns largos milhões de prejuízos sem nenhum fim nem finalidade à vista.(...)"

Julgava eu, há 50 anos, que seria possível transformar, inovar, acrescentar, melhorar, no interesse e em benefício de todos. A CP, infelizmente, não é caso único! 

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