terça-feira, 9 de dezembro de 2025

Os Valentes

Clara Pinto Correia escreveu muito, e bem! Foi bióloga interventiva e lutadora, figura pública idolatrada até que a sociedade lhe "fez a folha" e deu-lhe o prémio do esquecimento, limpando tudo o que de bom tinha realizado. Um erro, se aconteceu, bastou para que os virtuosos a condenassem definitivamente, sem apelo nem defesa.

Morreu hoje, com 65 anos. Já recebeu os elogios fúnebres de meio mundo. O costume ...

Por aqui fica um excerto de um conto, de um dos muitos livros que por cá permanecem. Todos os que escreveu tiveram lugar na "estante" mas há vários que acompanharam a filha e já devem ter feito as delícias dos netos. "Adeus, Princesa!"

******************

"Era uma aldeia muito pequenina, ao fundo de um caminho de terra muito estreitinho, por onde entrava vida, depois de atravessarmos os eucaliptos acabados de plantar. Não havia nenhuma placa a sinalizar-lhe a existência. Nem sequer havia uma bolinha no mapa. Era ali, pronto. No meio de uma planície com sobreiros dispersos e com restolho malhado de giestas e de estevas estava um rebanho espalhado pela encosta que ficava à nossa direita, e a dois ou três metros desses rebanho estava um pastor em pé, com o cajado fincado no chão, e as mãos fincadas no cajado, com um cão preto sentado ao lado, como nas imagens dos pastores que nós agora vemos nos livros que nos falam de coisas que já não existem.

A aldeia só tinha uma rua. Ao cimo da rua, acabava a estrada de terra, e abria-se um terreiro mais ou menos circular, para onde dava o alpendre do Café Saudade. Nesse dia, o Café Saudade tinha a toda a volta mesas improvisadas por grades de cerveja com portas velhas estendidas por cima, ladeadas por bancos construídos com tijolos e tábuas. E também se tinham posto ali algumas cadeiras de plástico, umas brancas e outras verdes. E estavam várias pessoas atarefadas à volta das grelhas de carvão montadas à frente das casas mais próximas. E toda a gente fazia tudo com muita calma, mas sentia-se no vento do fim da tarde uma excitação difusa, imprecisa, uma antecipação de coisas raras, que ia e vinha, como os voos rasos das andorinhas. Era a excitação de esse dia ser sábado, e de esse sábado ser o sábado da festa anual que aquela aldeia organiza sempre que o Verão começa a desandar para o fim. 

Este ano era ano de pouca sorte, porque este sábado especial estava a ameaçar chuva. Lá mais para a noite, o Duo Fadista ia subir para as traseiras da camioneta estacionada ao lado do terreiro, que já estava toda equipada para o grande momento com dois microfones e um amplificador. E, nessa altura, ia animar-se o baile ao ar livre diante do Café Saudade, debaixo de duas fiadas de lâmpadas suspensas de telheiro a telheiro. E, enquanto durasse o baile, iam beber-se muitas cervejas, e outros tantos bagaços. E haveria frango no churrasco. E também haveria coiratos e torresmos. E, a certa altura, leiloava-se um leitão. E, logo a seguir, era a dança da rosa. (...)"

Contos
Clara Pinto Correia
Relógio d'Água (2005)

quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

Limpeza

Vivemos tempos difíceis! 

Não há nada pior para iniciar qualquer pretenso texto do que escolher um "lugar comum". E, no entanto, tem pleno cabimento utilizá-lo, quando se olha o que vai pelo mundo. Das guerras que permanecem, da Ucrânia a Gaza, da Somália à Venezuela e muitos outros sítios que são esquecidos ou devorados, rapidamente, pela espuma dos dias.

Conversações, reuniões, cimeiras, encontros, telefonemas, mensagens, "bocas", avisos, ameaças, conversas da treta, discursos profundos, opiniões certeiras, "caganeirices" chiquérrimas, falinhas mansas, gritos inflamados, tudo cheio de certezas e ditos para "inglês" ver e "portuga" crer.

Por vezes chega a parecer que regressámos à "outra senhora", com notícias, comentários e análises parciais, que nos despejam tudo e o seu contrário, fazendo-nos sentir mentecaptos e completamente desprovidos de um mínimo de senso ou de inteligência.

Valha-nos o Youtube e a música que nos disponibiliza, à borla, sem comentários e deliciosa. Lufada de ar fresco que distrai, revigora e limpa a cabeça.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Restauração


A pergunta impõe-se: e se, de repente, a areia que o mar levou, for restaurada e voltar ao seu lugar habitual?

A resposta é: estaremos a chegar ao Verão e a preparar-nos para os banhos costumeiros.

domingo, 30 de novembro de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) AS MENINAS E OS MENINOS

A casa da Avó. A casa dos avós.

Uma recordação que se ia tornando nebulosa. No entanto, não se esbatia totalmente. A casa onde, em pequenos, o irmão e ela passavam parte dos dias de Verão.

Quatro cadeiras à roda de uma mesa. Às vezes cinco, ou seis. Era o princípio das lembranças.

Mobília velha. Muito. De pinho com caruncho a roer, sempre a roer.

"Não haverá nada capaz de dar cabo desta bicharada?!"

As cadeiras e as mesas dir-se-iam esquecidas, no meio da cozinha. Passavam-nas, às vezes, com um esfregão embebido em azeite. Deixavam-se secar. Era ali que os avós se sentavam a comer. Eles também, quando lá estavam.

Café da manhã, almoço, jantar. Horários incertos porque não se tinha fome ou por se dar prioridade a galinhas, coelhos e porcos. Ou,

"Vou primeiro dar uma volta ao palheiro, a ver se há alguma novidade ..."

"E eu ainda vou lá acima. Tenho um canteiro de alhos-porros para sachar!"

Mais isto. Mais aquilo.

Comia-se, ou não se comia?

Quando lhe parecia que já era tempo, ela chamava o irmão,

"Duarte, vamos pôr a mesa!"

E logo a Avó,

"Deixa-o, que está entretido!..."

Pusesse ela a mesa. Toalha de algodão aos quadrados. Pratos, talheres, os copos.

Preferia as toalhas claras. Brancas. As da Avó, porém, andavam todas por tons escuros. Castanhos, azuis.

"Sujam-se menos ..."

Que ideia! Sujavam-se tanto quanto as outras, só que não se notava.

Pois era, a casa dos avós não tinha idade.

Casa de tectos altos, em madeira. Paredes rugosas feitas de cal, areia e cascalho. Enegreciam com o acender do fogão e dos fumeiros. Embranqueciam com um balde de cal e algumas pinceladas. Outra vez a cal!

Não. A casa não se adiantara, nem mesmo naqueles anos em que todos se batiam contra os atrasos. Em que se levava tudo por diante. Liberdade recente, a do 25 de Abril.

E a Avó, adiantara-se?

Bem ...

Antes e depois de setenta e quatro nunca usou calças nem blusas sem mangas. Continuou a vestir-se e a adornar-se como se vestem e adornam as mulheres no campo. Por dentro, contudo, diferente das outras.

Dizia de si própria

"Sou brava a dormir!"

Mais. Garantiam os conhecidos que também o era acordada.

"Ora! ... Faço o que tem de ser feito."

E dizia o que, na sua opinião, devia ser dito.(...)"

Novelas ao Vento
Filomena Marona Beja
Parsifal (2023)

terça-feira, 25 de novembro de 2025

segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Correio

Cada vez mais vai rareando o correio colocado na caixa, obrigatória, que "vive" junto ao portãozinho da entrada da casa há quase meio século. A chave ainda funciona e a cor, verde, mantém-se não já com a tinta inicial na totalidade, mas ainda com alguns resquícios das primeiras pinceladas que obteve.

O ritual de pegar na chave, abrir a portinhola e espreitar para dentro repete-se todos os dias úteis, ainda que, na maior parte deles, os passos se revelem inúteis.

Hoje foi diferente! Três cartas, pasme-se! 

A primeira, da Junta de Freguesia, trazia o convite para o convívio natalício dos fregueses idosos; a segunda avisava que o débito do seguro vai acontecer no próximo mês; a terceira, era visível, trazia importância colada e bem vincada. Tinha como remetente o Ministério da Administração Interna e não era previsível que fosse algum chamamento da Ministra para outro almoço convivial.

A (des)agradável surpresa empertigou-se e ditou a sua lei: comunicava uma infracção acontecida em 03.08.2024, por violação do limite de velocidade estabelecido no local "Xis", bem bonito, por sinal. Na Barquinha, com o Tejo a fazer companhia pela esquerda, estaria, decerto à direita, o aparelhinho que me caçou sem contemplações.

Demorou mais de um ano, mas chegou. A lei é para se cumprir e os infractores (todos?) são penalizados. Já agendei o pagamento para o mês que vem, aproveitando o prazo de 15 dias que, amavelmente, me foi concedido.

domingo, 23 de novembro de 2025

Comemorações

Com o aproximar das "comemorações oficiais" dos 50 anos do 25 de Novembro, muita gente tem botado faladura e uma grande maioria não sabe o que diz, ou porque ainda não tinha nascido ou andava de cueiros, ou porque lê uma pseudo-história enviesada e parcial, que pretende justificar, aos olhos das novas gerações, o que fizeram ou não fizeram algumas figuras (e figurões) que hoje pretendem a primeira fila ou, para os que já desapareceram, se envidam esforços no sentido de os colocar num centro, fictício, do "teatro das operações".

No Expresso da passada sexta-feira e no Público de hoje, Sousa e Castro, antigo Capitão e actual Coronel na reserva, encontram-se duas excelentes entrevistas de quem bem sabe do que fala e não tem papas na língua para analisar 1975, com os olhos de quem o viveu por dentro e sabe o que diz.

Apenas alguns excertos "roubados" às entrevistas publicadas, para figurarem no "arquivo" e certificarem aos vindouros que, a maioria das vezes, nem tudo o que parece, é.

Expresso: "Tentar fazer uma equivalência em termos de importância histórica e de postura do Estado entre uma revolução que derruba uma ditadura e os acontecimentos de 25 de Novembro é absurdo. No 25 de Abril muda tudo, enquanto a 25 de Novembro quase tudo ficou igual, do ponto de vista do poder. Manteve-se o Presidente da República, o primeiro-ministro e o Governo, à exceção de alguns ministros. Os acontecimentos do 25 de Novembro são apenas uma consequência do 25 de Abril. Pôr estas datas ao mesmo nível é a última coisa que eu esperaria ver. É uma tentativa muito serôdia de reescrita da História por parte deste Governo. Uma jogada política, para não dizer pior."

"Obviamente, não. Para alguém que participou na revolução que deu ao povo português a liberdade, ver uns "marrecos" dizerem que há coisas iguais ou até melhores do que o 25 de Abril dá uma revolta profunda."

" A meu ver, o general Costa Gomes é a pessoa mais injustamente esquecida da História moderna portuguesa. Foi o general mais brilhante que Portugal teve no século XX e foi ele que segurou todas as convulsões, desde o golpe miserável de Spínola a 11 de Março até à gestão de toda a crise do PREC e dos governos gonçalvistas. No dia 25 de Novembro convocou uma reunião em permanência do Conselho da Revolução logo que surgiram as primeiras notícias da movimentação dos paraquedistas e, à margem dessa reunião, ia fazendo os seus contactos. Sei que chamou o Álvaro Cunhal e deu-lhe a entender: "Esteja quietinho, porque não tem qualquer hipótese de levar a sua à frente." E o PCP mandou recuar. Costa Gomes foi a personagem mais decisiva do 25 de Novembro, a par de Melo Antunes, que escreveu o "Documento dos Nove". E até ao fim da vida tentarei honrar a memória desses dois homens." 

Público: "Na altura tivemos de lidar com o CDS, que era o partido legal mais à direita. Mas o CDS tinha gente civilizada e culta na sua liderança. Está a ver o Freitas do Amaral, o Adelino Amaro da Costa ou o Francisco Lucas Pires a reescreverem a História de Portugal? Está a vê-los a dizer: não, 0 25 de Abril não foi uma revolução, a revolução foi a 25 de Novembro? Não estou a vê-los. Hoje temo a extrema-direita institucional, que é o Ventura, do Chega, e o Nuno Melo, do CDS. O Ventura é um aventureiro político, um populista, um tipo sem cultura e sem ideias. O Melo é um político medíocre, que se deixou arrastar pelo Ventura para esta ideia de se comemorar o 25 de Novembro. O Luís Montenegro, e vou dizer isto com palavras claras, é uma pessoa muito ignorante. Com pouca cultura, que não sabe nada de história. Por isso, foi na onda. É a ironia da História."

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Vícios

Alguns dias de ausência, não que faltem assuntos mas apenas porque "outros valores mais altos se alevantam", como disse o nosso Camões. Por vezes, também a paciência se ausenta e a vontade suspira por alguns momentos de descanso e meditação. 

O pouco tempo livre (ser reformado dá muito trabalho) tem sido aproveitado para dar uma nova (e melhor, espero) organização aos selos, de forma a que, se aparecer alguém que evite que eles sejam "mergulhados" no camião que há-de "limpar o lixo" existente cá por casa, perceba alguma coisa do que por ali está. A filatelia já teve os seus tempos áureos e o selo é, cada vez mais, um "utensílio" arcaico, em vias de extinção.

Estamos em mudança constante e só alguns "tontos" ainda vão achando que vale a pena preservar alguns vícios ...

Voltando ao tempo livre, aguarda-se que a IA altere a duração dos dias e possibilite espaço temporal que permita ver e ouvir, atentamente, o que se vai passando pelo mundo. Será? Ou já estarei a delirar?

As guerras mantêm-se, o homem da melena continua a dizer bacoradas e a ser ouvido; o seu "imitador portuga" grita, berra e barafusta como se estivesse na tasca e fosse o único bêbado ainda em condições de debitar asneiras; o nosso embaixador do futebol transferiu-se para os negócios estrangeiros árabes e foi jantar à Casa Branca; as sondagens dos resultados das presidenciais servem todos os gostos e interesses e são de um rigor acima de qualquer suspeita.

O vício de ler continua mas os livros, pelo menos os que aqui "moram", são escritos por mão e pensamento humano. Até quando?

sábado, 15 de novembro de 2025

Dança

A arte e o humor de António, no Expresso desta semana, dá-nos conta de que, pelo andar da carruagem, todos aprenderemos a dançar a valsa da melena. Daí a necessidade de fazer um grande salão na Casa Branca, para que toda a gente lá caiba. Ou será apenas a gente importante?

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

Convívio

Não concordo muito com a proliferação dos "Dias" disto e daquilo, por razões várias, uma das quais tem a ver com a banalização de tudo e de nada. Porém, hoje é o Dia Mundial da Diabetes e esta moléstia, por si só, justifica que me dobre e me renda à evidência da necessidade de estarmos atentos ao problema. Muitos especialistas consideram que a Diabetes se está a tornar um caso preocupante de saúde pública, a juntar a muitos outros que por aí andam.

A pouca experiência diz-me que não é uma doença "fácil", pela cobardia de que faz uso, não se mostrando e dando poucos sinais de alerta. Para agravar, os portadores dominam a arte da dificuldade em conviver com "é melhor não" perante gulodices apetecíveis e de recordações infinitas.

São demasiados hidratos, bolos nem pensar, que não os há sem açúcar, chocolate, só do negro e poucochinho, três peças de fruta diárias já é demais, um cacho de uvas, longe, bem longe, meia dúzia de figos moscatel, um crime, uma tangerina e já vais com sorte, legumes, legumes.

Valha-nos o RAP que, como sempre, demonstra no seu último livro de crónicas - Mundo, pára quieto - , que "rir é o melhor remédio".

Tentemos ceder apenas a esta tentação ... 

segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Mas nem toda a história de retrocesso é uma história de derrota.

Na Segunda Guerra Mundial, mais uma vez, os serviços especiais do exército inglês desenvolveram ratos incendiários. Os ratos, cuja utilidade para os serviços de informações ou para os militares parece despontar apenas depois de devidamente privados de vida, eram esventrados e recheados com explosivos, sendo então distribuídos na cercania das casas de máquinas alemãs, na esperança de que os boches, subconscientemente condicionados pela mortandade decorrente das muitas eclosões de peste negra na Idade Média, pegassem neles com muito noginho e cuidado e optassem por se livrar dos bichos incenerando-os higienicamente na caldeira. Os alemães perceberam a marosca à primeira, e nenhuma caldeira chegou a rebentar mas, alemães como não conseguem deixar de o ser, dedicaram tanto tempo e recursos à busca de mais ratos armadilhados que os ingleses consideraram a Operação Rato um imenso sucesso.

Com tantos e tão diversos exemplos de animais recrutados para o caos do eterno desaguisado entre humanos de diferentes credos, nacionalidades ou tonalidades epidérmicas, não é de espantar que os iranianos, constantemente em palpos de galinha com a perspectiva de a Mossad tirar da sua cartola de truques e patifarias um coelho ainda mais discreto e mortífero, detiveram catorze esquilos, em 2007, sob a acusação de os pequenos e aparentemente inofensivos roedores serem, na verdade, espiões a mando de Israel. Sem adiantar detalhes, as autoridades iranianas limitaram-se a confirmar o zunzum, assegurando ter capturado os animais, artilhados com a mais recente electrónica de escuta, antes mesmo de estes iniciarem funções. (...)" 

O desfufador
- Volume 1 Contágio
Valério Romão

sábado, 8 de novembro de 2025

Palavras bonitas

QUADRILHA

João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.

João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.

Vai, Carlos!
Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

Mudanças

A "trovoada" que aconteceu ontem nos Estados Unidos, com a eleição de um ugandês, muçulmano e democrata para mayor de Nova Iorque, deve ter mexido imenso com o homem da melena. Nem deve ter pregado olho, o que muito terá custado à "boneca".

Não creio que tenha sido uma relação causa/efeito, mas lá que esta noite trovejou como há muito tempo não se ouvia neste cantinho oestino, aconteceu. E logo por aqui, sítio que, felizmente, até costuma ser muito calminho.

Tudo muda ...

segunda-feira, 3 de novembro de 2025

sábado, 1 de novembro de 2025

Veremos ...

Roubo, parcial, da crónica de José Pacheco Pereira, publicada no jornal Público de hoje.  Está a tornar-se cada vez mais difícil encontrar quem pense, analise e diga o que lhe vai na alma, e desbrave o caminho retrógado que, parece, estamos a trilhar.

Lembro-me sempre de um meu professor, há mais de meio século, que dizia, com ênfase, "quanto mais sei, maior é a minha ignorância" e confronto-me, diariamente, com a exposição ignorante, estúpida, parva e burra, alérgica a qualquer hipótese de possível melhoria e convencida que as suas "mensagens" podem servir para alguém ou alguma coisa.

***********************************************************************************

"(...) Vejam-se estes exemplos de uma caixa de comentários na página de Facebook do Chega: 

È por camara escondida para depois os visitar-mos na calada da noite. E apagar essas velas

Eles com as coécas todas mulhadas

O homem está corretíssimo, mas como é um homem onesto a grande parte desta gente mamona, ou BURRA NÃO GOSTA.

Nem mais ... é a mesma coisa aqui na englaterra ... se fore preson por mais de um ano. Compre a pena e a deportado

Estão com medo de alguma coisa! Força André Ventura, se fores presidente da República, no CHEGA a substitutos a altura para liderar o partido! CHEGA (sic)

Todos os dias, nesta página de Facebook, e por todo o lado nas caixas de comentários, escreve-se assim, e pode-se imaginar como fala quem assim se expressa. Ora, quem escreve assim não é patriota, porque despreza aquele que é um dos principais factores de identidade nacional: a língua.

Esta não é uma questão de elites contra o "povo", mas sim um confronto entre quem respeita a sua língua e quem a despreza, entre quem despreza o saber e quem sabe o que lhe falta saber. Isto hoje é uma questão política, porque a democracia precisa da consciência do valor do saber, do falar, do conhecer. Esta consciência é hoje um dos alvos preferenciais do populismo que valoriza a ignorância.

Quem, por razões sociais, não tem o mínimo de educação formal, vem de meios de vida difícil, não teve oportunidade de estudar, teve de atravessar muita dificuldade, muita miséria, tem vergonha de não falar ou escrever bem, porque tem a aguda consciência que isso é um factor de pobreza e exclusão. Quem, por outro lado, fala e escreve mal português e tem um vocabulário exíguo, pode escrever com erros de ortografia palavra sim ou palavra não, e ser muito eficaz em usar emojis de merda em linhas  e linhas ou em insultar, mas não pode bater no peito nacional pelo seu país.

Uma das suas ironias é a reivindicação aos imigrantes de, para terem a legalização, saberem falar português, coisa que os seus julgadores não sabem de todo. É por isso que muitos imigrantes, a começar pelos que vieram das nossas colónias, falam muitas vezes melhor, num português impecável, e que é, para muitos deles, também a sua língua natal. Teriam vergonha de escrever a língua absurda das citações acima. (...)"

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Limpeza

Já não ando muito a pé pela cidade, é verdade, (prefiro a beira da Lagoa) mas, sempre que isso acontece, deparo-me com ruas sujas, lixo fora dos respectivos contentores, cartão no "amarelo", plástico no "verde", cascas de batata e espinhas de peixe no "azul", papéis e sacos por todo o lado, "beatas" em busca de cinzeiro, meio atarantadas pelo chão, etc., etc..

Apetece-me sempre sugerir à Câmara Municipal que distribua e/ou coloque, em locais estratégicos, panfletos e cartazes que, de forma educada, chamem a atenção de todos os munícipes para a necessidade de colaborarem na manutenção das ruas limpas, alertando, assim, as consciências de cada um. 

Por exemplo: "Não deite lixo nas ruas. Utilize os caixotes destinados a esse fim. Colabore connosco e lembre-se que o custo da limpeza municipal também é seu".

Depois, raciocino mais um pouco, pondero e apetece-me pedir para, em vez do anterior, ser colocado em cada rua, em cada esquina, talvez até em cada porta, um cartaz com letras enormes, bem vermelhas e sublinhadas, dizendo:

NÃO SEJA PORCO!  PONHA O LIXO NO LIXO.

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Clonagem

Um, dois, três ... foi a conta que Deus fez!

E o "caramelo" quer três "Botas", talvez para utilizar dia sim, dia não e descansar ao sétimo dia. Ou será um para lhe lavar os pés, outro para lhe massajar o ego e um terceiro para lhe limpar a pinha?

Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar, mas dá uma vontade louca de perder a cabeça e mandá-lo à mxxxx com todas as letras, se isso fosse o remédio para o calar. Valha-nos o botão que muda de canal ou tira o som e as páginas do jornal que (ainda) vai sendo possível saltar. Neste tempo, ainda se vai vendo, ouvindo e lendo opiniões diversas, ao contrário do tempo por que ele grita, onde isso custava bem caro.

E vamos ter de gramá-lo, pelo menos, até 18 de Janeiro do próximo ano, cheio de vento, de certezas, de voz forte, clamando ao vento e aos céus, talvez na tentativa de que aquele pequenino defeito na língua desapareça com as asneiras que solta ... sem "3,14".

Valha-lhe um burro aos coices e três aos pontapés!

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) O problema e a razão pela qual esta atitude causa tanta estranheza, é que o coração tem um prestígio inexplicável. Ora, o coração, recordo, é uma bomba hidráulica. Uma aborrecida, burocrática, e fabril bomba hidráulica. Suga sangue por um lado, esguicha sangue pelo outro. Não sente nada, não ama coisa nenhuma. É um músculo. No entanto, exerce sobre as pessoas um fascínio incompreensível. Sobretudo em comparação com o cérebro, que tem muito má fama. O coração é sempre santo, o cérebro é sempre diabólico. Às vezes, alguém diz <<agora eu vou falar do coração>>, como se fosse uma coisa boa. Eu respondo sempre: <<Não, obrigado. Fala do cérebro, que eu prefiro.>> Falar do coração, normalmente, significa exprimir sentimentos inalterados pelo raciocínio. Ou seja, é dizer coisas sem pensar. É uma opção muito comum em quem devia ter preparado um discurso mas não esteve para se dar ao trabalho. Transforma a preguiça e a falta de consideração pelos outros em <<honestidade>> e <<franqueza>> (uma operação bastante indecente que o coração patrocina a toda a hora) e fala de improviso. Eu desconfio demasiado dos meus sentimentos para os exprimir dessa maneira. De vez em quando sinto coisas que, pensando bem, são absurdas. Mas é curioso que o coração nunca tem culpa. Há sempre uma maneira de atribuir a responsabilidade dos sentimentos desagradáveis ao cérebro. <<Sim, ele disse isso, mas estava de cabeça quente.>> A culpa é do cérebro. O coração é sempre puro. Comigo não contam para esta mistificação. (...)"

Coisa que não edifica nem destrói - Vol. II
Ricardo Araújo Pereira

sábado, 25 de outubro de 2025

La Traviata

No Dia Mundial da Ópera, é sempre um prazer ouvir e, melhor ainda, ver. Pena não ser ao vivo, no Metropolitan e sem o homem da melena por perto.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Expresso

Como acontece há mais de cinquenta anos, a edição semanal do Expresso entrou em casa no final da manhã de hoje. Com a mesma aparência, desta vez vem diferente. A primeira página não traz qualquer referência a conteúdos, títulos ou chamadas de atenção. Uma única fotografia ocupa-a pela totalidade, com uma breve referência em pé de página: " Esta é uma edição especial de homenagem a Francisco Pinto Balsemão, sobre o legado que deixa ao país."

Não vale a pena estar, agora, a tecer elogios próprios ou a copiar alheios, alguns deles com um cheirinho a hipocrisia chamuscada.

O Expresso foi, em Janeiro de 1973, uma lufada de ar, uma luz nova, um horizonte a abrir, um sol a raiar, para quem, até aí, tinha tido um acesso limitado, condicionado e vigiado, não fosse "o diabo tecê-las". A entrada no serviço militar, no Abril do mesmo ano, trouxe conversas, opiniões, abertura, discussão, aprendizagem, clarificação, despertar para os condicionamentos de um regime sórdido, que só viria a cair no ano seguinte. E o Expresso ajudou!

A imprensa está a viver mal e a independente e plural tem muitos soluços. Espero que o Expresso se aguente e tentarei contribuir para isso, mas apenas o desejo se e enquanto a liberdade e a independência se mantiverem como até aqui. 

domingo, 19 de outubro de 2025

Rescaldos e sonhos

Não peças a quem pediu nem sirvas a quem serviu, dizia-me, muitas vezes, a minha mãe, ilustrando os que, mal sobem a escada, partem todos os degraus para que mais ninguém os possa apanhar.

Vivemos tempos de hipocrisia, de arrogância, de "vale tudo", de não se olhar a meios para atingir os fins, de julgar que a carteira, mesmo lisa, há-de um dia ser cheia e comprar tudo.

Surgem debaixo dos pés os oportunistas, os mentecaptos, os que acham que, sem eles, o mundo não existiria. E fazem escola! E têm apoiantes e sobem, sobem, qual balão que, um dia, vai esvaziar. E essa é a sua grande luta: se e quando o balão esvaziar, ao menos ninguém dê por isso.

O poder, o poder, o poder, não para ajudar a resolver mas para (me) engrandecer! E, sentado na cadeira, reclamar a reverência a que (me) julgo com direito, adquirido à custa de muita habilidade e cretinice.

Não têm culpa! A fuga dos que tinham condições e há muito decidiram afastar-se, trouxe para a ribalta gente de fraca estirpe e má índole, e colocou na gaveta do esquecimento aqueles para quem Abril sonhou abrir as portas. 

segunda-feira, 13 de outubro de 2025

Autárquicas 2025

Agora só para o ano, se não houver nenhum engano ... Começaremos 2026 a procurar novo Presidente da República e, ao que parece, não irão faltar candidatos para todos os gostos.

Bem mais de metade dos portugueses inscritos (existirão nos cadernos alguns que já lá não deviam "morar") votaram e escolheram quem os irá governar, a nível local, nos próximos quatro anos.

Por aqui, a "luta" foi renhida, mantendo-se a Câmara nas mãos do VAMOS MUDAR por uma "unha negra" - apenas 140 votos. Só a contagem das duas freguesias da cidade determinou o resultado final. No resto do concelho, a predominância é o regresso ao passado, com um "cheirinho" a essa novidade barulhenta que, felizmente, ficou bem longe do gritado.

Não se imagina fácil a gestão da autarquia, pese embora a experiência já adquirida pelo actual e futuro Presidente.

sábado, 11 de outubro de 2025

Autárquicas 2025

Reflectindo ... copiando o que está a acontecer em todo o país.

E o resultado dessa reflexão profunda, empenhada, sabedora e concentrada?

A ver vamos!

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

Fui (re)ler. A memória já só retinha o tema e a forma que o autor, e protagonista principal, tinha encontrado para narrar o seu sofrimento às mãos dos fascistas alemães, apenas e só por ser judeu. Custa-me a acreditar que, se fosse vivo, Primo Levi concordasse com o que alguns compatriotas seus têm levado a cabo em Gaza, com a justificação de estarem a vingar o atentado terrorista de 7 de Outubro de 2023. Pelo contrário, acho que ele deveria ser um acérrimo defensor do diálogo e da paz.

"(...)  Ka-be é a abreviatura de Krankendau, a enfermaria. São oito barracas, em tudo parecidas com as outras do campo, mas separadas por um arame farpado. Contêm permanentemente um décimo da população do campo, mas poucos permanecem mais de duas semanas e ninguém mais de dois meses: dentro destes prazos temos obrigação de morrer ou ficar curados. Quem tem hipótese de se curar, no Ka-Be é tratado; quem tem tendência para piorar, do Ka-Be é enviado para as câmaras de gás.

Tudo isto porque temos a sorte de pertencer à classe dos "judeus economicamente úteis".

Nunca entrara no Ka-Be, nem no Consultório, e portanto tudo aqui é novo para mim.

Os consultórios são dois, o Médico e o Cirúrgico. Diante da porta, na noite e no vento, estão duas longas filas de sombras. Uns precisam só de uma ligadura ou de um comprimido, outros pedem para marcar consulta; alguns trazem a morte na cara. Os primeiros das duas filas já estão descalços e prontos para entrar; os outros, à medida que a sua vez se aproxima, procuram, no meio da confusão, desligar os laços improvisados e os arames dos sapatos e desenrolar, sem os rasgar, os preciosos panos para os pés; não demasiado cedo, para não ficarem inutilmente na lama com os pés descalços; não demasiado tarde, para não perderem a vez: pois é rigorosamente proibido entrar no Ka-Be com os sapatos. Quem está incumbido de fazer respeitar a proibição é um gigantesco Häfling francês, que estaciona no cubículo colocado entre as portas dos dois consultórios. É um dos poucos funcionários franceses do campo: e não se pense que passar o dia entre os sapatos lamacentos e rotos constitua um pequeno privilégio. Será suficiente pensar em quantos entram para o Ka-Be com os sapatos e saem sem precisar deles ...

Quando chega a minha vez, consigo milagrosamente tirar os sapatos e os panos sem perder uns nem outros, sem que me roubem a marmita e as luvas e sem perder o equilíbrio, embora sem largar o boné, que por nenhuma razão se pode ter na cabeça ao entrar nas barracas.

Deixo os sapatos no depósito e guardo a respectiva senha, depois, descalço e coxeando, com as mãos ocupadas com todas as minhas míseras coisas, que não posso deixar em lado nenhum, sou admitido no interior e fico numa nova bicha que termina na sala das consultas. 

Nesta bicha despimo-nos progressivamente e, quando a nossa vez se aproxima, é preciso estarmos nus porque um enfermeiro nos coloca o termómetro debaixo da axila; se alguém estiver vestido, perde a vez e volta para o fim da bicha. Todos devem pôr o termómetro, mesmo que tenham só sarna ou dor de dentes.

Deste modo há a certeza de que quem não está seriamente doente não se irá submeter por capricho a este complicado ritual. (...)"

Se isto é um homem
Primo Levi
Público - Colecção Mil Folhas (2002)

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Matemática

O Clube Tinta da China, do qual sou "sócio" desde o seu início, enviou-me, na passada semana, o livro 33, da autoria de Marcelo Viana, com o título Histórias da Matemática - Da contagem dos dedos à inteligência artificial.

O título do livro indicia claramente o conteúdo e, mesmo para quem não é dotado de grandes saberes matemáticos, é extremamente interessante. Está carregado de exemplos de aplicações e descobertas matemáticas e ainda só vou no Séc. XVII ...

Num dos desafios, o autor convida-nos a determinar os anos vividos por Diofanto, filósofo grego que terá vivido nos anos 250 A.C.. De acordo com o autor, o texto/problema aparece numa colecção de quebra-cabeças do Séc. V e diz o seguinte:

"Aqui jaz Diofanto, vejam que maravilha. Por arte matemática, a pedra nos diz a duração da sua vida. Deus lhe deu um sexto da vida por infância. Mais um duodécimo por juventude, quando surge a barba. Um sétimo mais e começou o tempo do casamento. Cinco anos passaram e um filho chegou. Tragédia, o herdeiro foi levado pelo destino quando tinha por idade a metade da vida de seu sábio pai. Depois de se consolar com a ciência dos números por quatro anos mais, terminou Diofanto enfim sua existência."

Com que idade morreu Diofanto?

Não me dei ao trabalho de tentar descobrir o valor de X (incógnita da idade), nem a forma/fórmula de equacionar o problema. "Googlei" e a IA deu a resposta imediata: Diofanto morreu com 84 anos de idade!

Palavras para quê ...

domingo, 5 de outubro de 2025

República

Dia do aniversário da República, que comemora hoje 115 anos. Talvez o número, que já foi da emergência nacional, tenha determinado a quase ausência de referências à data.

Nos jornais de hoje, nem uma linha; nas televisões quase a mesma coisa; das entidades oficiais, a presença, discreta, no hastear da bandeira na varanda da Câmara de Lisboa, sem direito a discursos ou conversas, que a campanha autárquica poderia torpedear e sair lengalenga falsa ou enganadora.

Lembro-me, em jovem, de dois grandes republicanos caldenses, atravessarem a Rua Almirante Cândido dos Reis com uma bandeira nacional às costas, bem desfraldada e na posição correcta. Tinham sempre chatices, mas lá iam mantendo a tradição de que o regime não gostava nada.

Estaremos a voltar a esses tempos?

Viva a República!!!

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Dia Mundial da Música

 Música a sério, e não a que nos vão servindo por aí, a toda a hora e em doses industriais!

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Palavras bonitas (talvez actuais)

Ao Sr. José Ventura Montano
(Rogando-lhe socorro para pagar as rendas
das casas em que o autor habitava)

Demanda-me usurário senhorio
Do já findo semestre a soma escassa,
E enjoada de esperas, sei que traça
Pôr-me em Janeiro a passear ao frio.

Ele em tais casos tem mais brio,
Que é homem pé-de-boi, vilão de raça.
Já creio que mandado extrai e o passa
À mão ganchosa de aguazil bravio.

Tu, que detestas esta corja horrenda,
Que deveu a ganância inútil sua
Primeiro ao chafariz, depois à tenda,

O avaro alegra, que um semestre amua;
Acode ao caro amigo, antes que aprenda
De cães vadios a dormir na rua.

Obras escolhidas
Bocage
Círculo de Leitores (1985)

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Sinas

Há dias assim!

Apetece-me escrever qualquer coisa e, ao mesmo tempo, interiormente algo me sussurra: não inventes, fica quietinho, à espera que a vontade passe, como o outro.

O lápis continua na mão e desliza, garatuja, gatafunha, risca, não desenha, que isso é mester a que a mão foi sempre arredia, anota, aponta, regista, começa, termina, volta ao sítio que o guarda, repensa, hesita, posiciona-se e, na sua santa ignorância, recoloca-se na mão, aguardando a sua oportunidade de servir, que foi para isso que ele, lápis, foi concebido.

Na oficina, onde o carro teve de ir para mudar a lâmpada do pisca traseiro esquerdo, fundida por excesso de uso, acredito, a senhora do atendimento, após receber o pagamento do serviço, diz:

- Muito obrigada e até à próxima. Um bom fim de semana ... ai, que disparate! Boa semana. Credo, já estou tão cansada ...

E tinha razões para isso. Naquela meia hora que por lá estive a aguardar, a senhora não parou um momento. Fez telefonemas, atendeu clientes, foi à oficina, recebeu chaves, deu chaves, puxou do multibanco, recebeu dinheiro e deu troco, imprimiu facturas, fez folhas de obra, chamou colegas mecânicos, deu opinião sobre o melhor óleo para determinada viatura, orçamentou um pedido de reparação que não foi aceite e, como se não bastasse, ainda veio a correr atrás do distraído que se tinha esquecido da lâmpada que sobrara.

Como o lápis, há gente que nasceu para servir ... e ainda consegue sorrir, mesmo cansada. 

sábado, 27 de setembro de 2025

Moderação

Até aqui, uma das minhas grandes preocupações tem sido a moderação - minha e da sociedade -, sempre com a consciência de que não é nada fácil ser moderado e com a esperança de que eu não exceda os limites e que, na convivência social, aconteça o mesmo.

Todos sabemos que, por vezes, podem acontecer excessos por "dá cá aquela palha". O que não sabíamos é que a moderação tinha limites e estes podiam ser matematicamente explicitados e legalmente estabelecidos.

O Governo de Montenegro acabou de nos provar como, afinal, tudo é fácil e possível de quantificar. Até a moderação! 

O valor moderado das casas passa a ser de 648.000 € e o das rendas das mesmas, de 2.300 €. Os valores fixados determinam o valor da moderação e estão perfeitamente ao alcance de qualquer bolsa moderada e bem intencionada ...

A moderação está na ordem do dia, nas casas, nos gestos e no vocabulário. Aguarda-se, apenas, que a moderação parlamentar confirme a decisão governamental e que a moderação de Belém a promulgue.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) - <<Maldito!>> - murmurou o Mil-homens. - <<Mandou cortar a hera e pôs cal nas juntas do muro ... Quando nós viemos isto não estava assim. Vamos dar a volta a ver se há outro lugar por onde subir>>.

Contornámos o paredão, que dá ali uma volta, e ao pouco de andarmos vimos, quase tapado por um monte de terra de obras, um grande furo, rente ao chão, que se metia pelos alicerces do muro como se estivesse a fazer uma mina. Não havia ali ninguém a trabalhar, sem dúvida por causa da chuva. Depois de reflectirmos um pouco no que seria aquilo, percebemos que era para passar as águas do canal novo, como estavam a fazer em muitas outras casas, pois dizem que agora a gente rica vai ter torneiras nas suas casas, mas eu não vou acreditar até que o veja ... Então, mesmo sabendo que nos íamos encher de lama, pois aquilo estava uma desgraça, metemo-nos pelo furo, e após alguns passos vimos o céu por cima de nós e os galhos de umas árvores por outro furo que subia a pique.

<<Põe-te aqui>> - ordenou o Bocas, com aquela sua maneira de mandar, quando andava nelas, que não admitia outra resposta senão obedecer. Agachei-me um pouco, e depois de meter a manta por cima das costas, subiu aos meus ombros até chegar à parte de cima do furo apoiando-se nos cotovelos. Espreitou um pouco e desceu com um salto, para ficar especado, encostado à parede e com os olhos postos em nós.

- <<Está ali!>> - balbuciou muito assustado.

<<Quem, homem?>>

- <<A mulher, a tal senhora ...>>

- <<Eu não vos dizia?>> - argueirou o Mil-homens, como que pesaroso de que fora certo. - <<Mas viste-a bem?>>

- <<Meu Deus, não parece coisa deste mundo! Fiquei sem respiração ...>>

- <<Deixa-te de merdas ... Já tenho vinte e quatro anos e já passou o tempo de acreditar em bruxas.>>

- <<Meu Deus!>> - continuou a falar, como se não nos tivesse ouvido. - <<Põe-te aí; deixa-me vê-la outro bocadinho.>>

- <<Pois eu também quero ver o que é isso ...>> 

O Aladio tirou uma garrafa de aguardente, que roubara na tasca e que trazia no bolso da samarra, e bebemos uns valentes goles para nos animar. (...)"

A borga
Eduardo Blanco Amor
Guerra & Paz (2023) 

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Complicação outonal

Chega hoje o Outono e traz com ele o céu azul, pouco vento e uma temperatura agradável, que não convida ao banho nas águas, frias, da Foz. Acabou a época!

Ou talvez não! Com tantas alterações que vão acontecendo, no clima não controlável e naquele que podíamos apaziguar, quem sabe se Outubro não proporciona grandes modificações e, talvez, umas boas banhocas. A meter água, vamos ter muita gente ...

Começaram as aulas, a "Uber" está de prevenção, o "restaurante" abre portas com alguma frequência e sempre com o maior prazer, a logística do trabalho aperta, as folhas do jardim vão-se acastanhando e caindo, a "arrumação" dos troncos do pinhal está longe de estar concluída. Para além de tudo isto, que não é pouco, os entendidos recomendam actividade física, para prevenir o "esquecimento" e diminuir o risco dos "diabretes".

Que trabalheira, para mim, que há muito concluí ter feitio para estar de férias.

Vida de reformado é muito, muito, complicada ...

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Palavras bonitas

O VALOR DO VENTO

Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto

Todos os Poemas

Ruy Belo
Assírio & Alvim (2000)

domingo, 14 de setembro de 2025

Adversativas

Pelo céu vai uma nuvem, um ritmo lento, não seu, mas do vento que a impulsiona lá bem no alto. De quando em vez, dá um ar da sua graça e tapa o sol, impedindo o visionamento do azul celeste. Feitios ... a nuvem bem tenta fazer o que quer, lhe vai na real gana ou pensa ser o melhor para si e para as outras que a acompanham.

Porém, os condicionamentos são muitos e nem sempre a sua vontade prevalece. Melhor ainda, é muito raro que seja determinante, se é que alguma vez acontece. Vai de sul para norte, impulsionada pela nortada e, de repente, o vento muda e a trajectória altera-se, sem dar tempo, sequer, para dizer de sua justiça e obstar a um novo rumo que, normalmente, até nem é do seu agrado.

Todavia, como é perseverante, lá prossegue o caminho ditado, não escolhido, sempre atenta à hipótese de tornar ao seu destino preferido, tendo consciência que o importante é fazer aquilo que se gosta e gostar daquilo que se faz. É o sul que lhe agrada, lhe manifesta clareza, lhe dá horizonte, a deixa sonhar e lhe torna, nos dias mais sombrios, uma réstea de esperança que o vento mude.

Contudo, o vento é demasiado teimoso ou dotado de uma personalidade forte para lhe fazer a vontade de forma simples, preferindo sempre os caminhos mais ínvios: roda para sul, depois para nascente, um saltinho a nordeste, uma viragem rápida ao oeste marítimo. Não permanece muito tempo na mesma direcção, não se entende com o imobilismo, adora mudar, dar velocidade à nuvem, mudar-lhe a cor, fazê-la acinzentada, muitas vezes negra, clarinha em outras. A nuvem reclama, barafusta, tenta sempre contrariar. Desistir, nunca.

É a vida ... da nuvem, claro!

domingo, 7 de setembro de 2025

Chevrolet

 


A adquirir, para fazer companhia ao "irmão" Matiz, que está a ficar deprimido com a solidão.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Expresso

Preparemo-nos, afincadamente, para o curso intensivo de modas e bordados que a China se prepara, com toda a calma e paciência, para ministrar a todo o mundo, sem necessidade de matrícula nem de propinas.

No Expresso desta semana, como sempre, o cartoon de António põe o dedo na ferida ...


Também nesta edição, a habitual crónica de Miguel Sousa Tavares termina com (mais) um exemplo das muitas mentiras que vêm caracterizando os últimos tempos e prometem prosseguir "sem dó nem piedade".

"(...) 3. A deputada do Chega Rita Matias (já habitual nestas coisas) acolheu, divulgou e ampliou um post de um militante do partido que sustentava que, enquanto os imigrantes chegados a Portugal só por esse facto beneficiam logo de apoios do Estado, os bombeiros voluntários combatem os fogos sem nada receber em troca. Ambas as coisas são falsas: os imigrantes não beneficiam de quaisquer apoios por o serem e os bombeiros voluntários, apesar do nome, recebem 75 euros por dia de combate ao fogo (mesmo para "voluntários" é bem pouco, mas há países, porventura mais inteligentes, onde os bombeiros, voluntários ou profissionais, não recebem por cada dia a combater fogos, mas o contrário: por cada dia em que não houve fogos, sinal de que antes investiram na prevenção e na vigilância). Irá a senhora deputada repor a verdade ou dá mais jeito deixar correr a mentira?."

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

Vai longe o tempo em que ler Aquilino "obrigava" a ter o calhamaço da Porto Editora sempre à mão. Agora, o telemóvel dá uma ajuda fácil e preciosa, se bem que surjam, de quando em vez, alguns vocábulos, frases ou expressões que a IA ainda não "aprendeu".

O livro chegou há cerca de um ano e é uma (re)edição de 2023 da Bertrand, com o apoio do Município de Moimenta da Beira. Juntou-se aos antigos que por cá "habitam", mas só agora teve direito a leitura. Nem sempre há disposição, e tempo, para o "castigo" que é ler Aquilino ... mas vale sempre a pena. A língua portuguesa tratada pelo Mestre é, ainda, mais maravilhosa.

"(...) Desde aquele momento, a velha igreja adormecida, que o tempo ia consumindo com limar silencioso, acordou à sanha renovadora de meu pai. Dias a fio, o rebuliço quebrou o laborioso encanto da Biblioteca. E uma manhã, uma revoada de aves noctívagas veio abater-se espavorida por detrás dos volumosos tomos de Cornélio Alapide e de Silveira, doutos comentadores de textos.

Minha mãe, na lacrimosa fonte dos monges, lavou de sol nado e sol-pôr. Às braçadas, dos arcazes profundos da sacristia e da casa da fábrica, lhe acarretou meu pai todas as alfaias de linho raso e pano holanda que havia. E tantas eram, que, no dizer de meu mestre, sobejavam para enroupar um albergue de desvalidos. Quando todos estes objectos, artificiosamente obrados, de doce nome e de corte extravagante, alvas, amictos, palas, sanguinhos, frontais, manípulos, corporais, bolsas, secavam ao sol, lembraram-me os estendedoiros de Maria de Nazaré que, antes de ser vaso de eleição, fora modista e lavadeira de delicados dedos.

As minhas devoções cumpri-as agora perante o Cristo exposto no baldaquino da Livraria. Em tempo ordinário, todas as manhãs, antes que meus dedos folheassem livro, dirigia-me à capela a orar e a contemplar. Era um louvável costume que meu mestre me inculcara como fonte copiosa de actividade. Sozinho na nave imensa, a meio dum vagalhão de sombras, o espírito penetrava no meu espírito como o sol por uma vidraça. Do alto tecto alteroso, em uma só curva, a pomba do Paracleto, com rémiges vermelhas laivadas a branco, voejando sobre um bulcão de labaredas, soltava as vozes doloridas: in nidulo tuo moriar. Pisando aquelas lájeas funerárias, eu ouvia-as sempre com a angustiosa obsessão dum peregrino perdido a monte. Em cima, na tribuna, S. Francisco e S. Domingos cresciam em sua estatura severa de gigantes; intimidava-me neles a expressão de força e ombratura de centuriões romanos.

- Não era podoa nenhuma este imaginário - disse-me um dia o senhor padre Ambrósio, apontando com o índex. - Foram assim, apoucados no jeito, grandes no gesto. Rezam as histórias que o papa Honório, terceiro deste nome, em vésperas de confirmar a Ordem dos Pregadores, fundada por S. Domingos, tivera uma visão. O filho de Deus aparecera-lhe armado de três lanças, lívido de cólera, prestes a destruir o mundo que três vícios, a soberba, a cobiça e a luxúria, devoravam. <<Tate! Meu Jesus - acudiu a dulcíssima Virgem Maria - os homens são fracos, são filhos de Adão pecador, mas regeneram-se.>> E, só com mostrar-lhe S. Francisco e S. Domingos, obteve a clemência de Jesus ... De facto, os dois vagabundos dos caminhos salvaram da morte o mundo cristão. Este estatuário não era podoa, Libório, não era ... (...)"

A via sinuosa
Aquilino Ribeiro
Bertrand Editora (2023)

segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Tão longe ...

Porque hoje é o "primeiro dia do resto da tua vida", fica por aqui uma escolha tão do agrado do teu filho, meu neto caçula, assinalando a quarta capicua de uma vida que se espera, e deseja, traga muitas.

Parabéns, meu filho!

sábado, 30 de agosto de 2025

Comboios

Há cinquenta anos que não ando de comboio, nem mesmo uma só voltinha para recordar tempos idos e viagens intermináveis, da capital do Oeste para a "cidade grande" e vice-versa. Grandes leituras e, também, enormes sonecas, nas quase três horas de caminho.

Talvez a electrificação da linha do Oeste e a consequente melhoria dos comboios e dos tempos de viagem ainda me apanhem em condições de voltar a usar um meio de transporte que as autoestradas, as vistas curtas e os interesses rodoviários tornaram obsoleto. Portugal é a excepção europeia no que à utilização dos caminhos de ferro diz respeito.

E a que propósito me lembrei eu, hoje, do comboio?

Vi por aí, numa dessas notícias "telefónicas" que chegam depressa e desaparecem logo, uma referência a Lobão da Beira, localidade do concelho de Tondela, distrito de Viseu. Associei a localidade a um cliente para quem, nos meus primórdios profissionais, despachei, via CP, muitos molhos de bacelos que o estimado senhor estava a plantar naquela localidade. Durante três ou quatro anos, já não recordo bem, o telefone fixo tocava e a encomenda surgia, sempre acompanhada pelo convite para visitar as vinhas plantadas, quando calhasse passar por Lobão. Se a visita nunca aconteceu, como me fui lembrar disto agora?

Associação de ideias ou idiotice?

quarta-feira, 27 de agosto de 2025

Ventos

No alto daquela serra não plantei uma roseira, como fez o outro!

Deixaram-nos por lá umas boas centenas de pinheiros, que vão crescendo, dia a dia, sempre com necessidade de alguns cuidados difíceis de concretizar por quem não tem saber nem experiência da arte. 

Do alto do Montejunto vê-se a Foz, ouvem-se os passarinhos, sente-se a música do vento que, por lá, sopra de forma constante. E cresce-se, vive-se, faz-se "ginásio" e vê-se, claramente visto, que a agricultura é "a arte de empobrecer alegremente".

Que fazer? Enquanto as pernas deixarem, vamos subindo e descendo ...

domingo, 24 de agosto de 2025

Inverno

Com Agosto à beira do fim e o Verão a caminhar junto, nota-se menos gente na praia eleita e já se vai comentando que as férias estão a dar as últimas, com o regresso ao trabalho de muita gente, nomeadamente dos que laboram bem longe daqui.

Como sempre, tudo parece ter um fim, o que nos faz encarar a vida pela positiva e pensar sempre que "depois da tempestade, surge a bonança". Será mesmo assim? Não parece!

Da guerra na Ucrânia, por mais "bocas" que o homem da melena amarelada lance, não se vislumbra fim à vista; na faixa de Gaza, outro mentecapto prossegue na destruição de muitos na tentativa de se safar a si próprio; a Europa lança foguetes e corre, desesperada a apanhar as canas. Por cá, apesar dos estudos, das análises, dos meios, das percepções, das cores dos avisos, dos heroísmos, das tardias ajudas, das festas e romarias com gin à mistura, os fogos continuam a destruir sem dó nem piedade uma parte significativa do país e a ceifar vidas.

Que o Inverno chegue depressa! 

sábado, 23 de agosto de 2025

Palavras bonitas ...

... adequadas para o meu pai, que partiu há precisamente uma década.

VOZ

Era uma voz que doía,
Mas ensinava.
Descobria,
Mal o seu timbre se ouvia
No silêncio que escutava.

Paraísos, não havia.
Purgatórios, não mostrava.
Limbos, sim, é que dizia
Que os sentia,
Pesados de covardia,
Lá na terra onde morava.

E morava neste mundo
Aquela voz.
Morava mesmo no fundo
Dum poço dentro de nós.

Libertação
Miguel Torga
Coimbra (1978) 

terça-feira, 19 de agosto de 2025

Nomes

Tenho um nome próprio não muito vulgar, escolhido por minha mãe, a qual nunca me explicou a razão de o ter feito nem em que se baseou para tal. A dúvida, metódica, já não pode ser esclarecida.

Para além de ser uma cidade da Florida, nos USA, e título de um romance de Virgínia Woolf, parece ter tido origem em nomes germânicos e significar "natural de terra gloriosa". Tinha de ser ...

Até aqui, nada de anormal nem de diferente de milhares de outros nomes escolhidos para muito boa gente.

Todavia ... em criança, poucos acertavam com ele, ouvindo-se Arlando, Arelando, Arrelando, Relando, e, apenas de quando em vez, a pronúncia correcta. Na escola, era frequente surgir o "H" no início e uma cara de espanto quando corrigia o erro. Ainda não há muito tempo, um funcionário ficou boquiaberto por não conseguir encontrar esse nome esquisito na ordem alfabética computacional. 

- Não é com "H"?

Com tudo isto convivi, e convivo, sem quaisquer problemas, muito menos recalcamentos, zangas ou amuos. E gosto muito do meu nome, devo confessar.

Esse gosto está mais reforçado com a constatação de este nome tão difícil ter sido trazido para a "montra" do supermercado e ser marca de comida distintiva para o melhor amigo do homem (e da mulher, claro)! 

sábado, 16 de agosto de 2025

Paz

Antes ou depois do encontro no Alasca? Adivinhar é proibido!


António, no Expresso desta semana, com a actualidade e a qualidade do costume!

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Não é nosso fim censurar uma tendência, que parece invencível; o que queremos é motivá-la.

Por menos observador e menos experiente que seja, qualquer pessoa reconhece que a toleima é quase sempre um penhor de triunfo. Desgraçadamente ninguém pode por sua própria vontade gozar das vantagens da toleima. A toleima é mais do que uma superioridade ordinária: é um dom, é uma graça, é um selo divino.

<<O tolo não se faz, nasce feito>>.

Todavia, como o espírito e como o gênio, a toleima natural fortifica-se e estende-se pelo uso que se faz dela. É estacionária no pobre-diabo, que raramente pode aplicá-la; mas toma proporções desmarcadas nos homens a quem a fortuna, ou a posição social cedo leva à prática do mundo. Este concurso da toleima inata e da toleima adquirida é que produz a mais temível espécie de tolos, os tolos que o académico Trublet chamou <<tolos completos, tolos integrais, tolos no apogeu da toleima.>>

O tolo é abençoado do céu pelo fato de ser tolo, e é pelo fato de ser tolo, que lhe vem a certeza, de que, qualquer carreira que tome, há de chegar felizmente ao termo. Nunca solicita empregos, aceita-os em virtude do que lhe é próprio: Nominor leo. Ignora o que é ser corrido ou desdenhado; onde quer que chegue, é festejado como um conviva que se espera.

O que opor-lhe como obstáculo? É tão enérgico no choque, tão igual nos esforços e tão seguro no resultado! É rocha despegada, que rola, corre, salta e avança caminho por si, precipitada pela sua própria massa.

Sorri-lhe a fortuna particularmente ao pé das mulheres. Mulher alguma resistiu nunca a um tolo. (...)"

A mão e a luva
(Queda que as mulheres têm para os tolos)
Machado de Assis (1839-1908)

terça-feira, 12 de agosto de 2025

Sono

 Está um calor de ananases.

O país a arder, as praias cheias, hospitais encerrados, festas e romarias, todo o mundo em férias ou quase.

As televisões repetem-se, os jornais copiam-se, o mercado futebolístico agita-se, os candidatos autárquicos colocam-se em bicos de pés, falam, falam e ... o país vai indo, sem culpa nenhuma de ter nascido e nem sequer ter sido ouvido no respectivo acto.

Sobram os tudólogos, ouvidos a torto e a direito, opinando em todas as direcções, com verdades nuas e cruas sobre tudo e sobre nada, opiniões, soluções e conclusões que, dez segundos depois, caem no mais completo esquecimento, substituídas por outras idênticas e igualmente vazias no valor e na forma e bem cheias na verborreia.

sábado, 9 de agosto de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) << O que não se vê não existe. >>

Se lhe perguntassem em que consistia o seu trabalho, bastava-lhe responder assim. Eliminar o que não pode ser visto. Engolir, apagar, sufocar, sepultar. Encobrir. Erguer muros. Abrir buracos. Omar era mestre na arte do soterramento e do segredo. Ninguém sabia tão bem como ele contrapor um silêncio opaco e sereno a quem fazia perguntas. Nada conseguiria fazê-lo fraquejar, nem sequer o rosto enlutado das mães que procuravam os filhos ou as súplicas de uma jovem cujo marido desaparecera, uma manhã. Em 1965, durante os protestos estudantis, ele participara na tarefa de apagar os vestígios do massacre. Com os seus homens, assumira o controlo da morgue de Aïn Chock e, durante dias, ninguém pôde entrar ou sair de lá sem que Omar desse o seu aval. Muitas famílias reuniram-se diante do edifício, reclamando os restos mortais dos seus entes queridos. Ele mandou expulsá-las. Depois, uma noite, carregaram os corpos na traseira de uma carrinha, com os faróis apagados. Corpos frágeis e leves, cadáveres de adolescentes e de crianças que não pesavam nada nos braços dos polícias encarregados de os transportar. Deslocaram-se até ao cemitério deserto e Omar ainda se recordava do reflexo da lua nos túmulos e dos buracos que foram abertos, em pontos dispersos, afastados uns dos outros. Os polícias começaram a descarregar a carrinha. Alguém quis rezar, mas Omar não o permitiu. Deus não era para ali chamado.

Naquele país miserável, bastava distribuir umas notas. Ao médico que testemunharia que não vira nenhum ferido. Ao coveiro que, por um punhado de dirhams, se esqueceria que cavara sepulturas para crianças assassinadas. Omar nunca aceitava dinheiro. E, no entanto, ofereciam-lho centenas de vezes. E viu, amiúde, os seus colegas aceitarem maços de notas escondidos num envelope de papel pardo. Viu-os enriquecer e subir na escala hierárquica. Casavam-se com raparigas ricas de boas famílias, cujos pais se alegravam por terem um genro na polícia. (...)"

Vejam como dançamos
Leïla Slimani
Alfaguara (2022)

quinta-feira, 7 de agosto de 2025

Actualidade

Quem é dotado, vê sempre mais longe, mais cedo, mais claro e não tem medo de o dizer bem alto.

Sophia de Mello Breyner Andresen escreveu o poema; Francisco Fanhais musicou-o e cantou-o há mais de meio século. Lendo e ouvindo com atenção, podia ter sido ontem. Estaria tão actual como naquela altura (1970).

As guerras continuam, a fome mata todos os dias, as armas proliferam, o poder encanta e utiliza-se despudoradamente em proveito próprio, o egoísmo grassa. Não podemos ignorar ...

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Respeitinho

O país vai de carrinho ... preocupado com as minudências, que ocupam as conversas, distraem da floresta e são tema dos areais.

De acordo com o "discurso" da senhora Ministra, as leis do trabalho têm de ser alteradas, porque há abusos que não se podem admitir. Há mulheres que se aproveitam da lei e usufruem da dispensa de trabalho - duas horas por dia - para amamentarem os filhos até eles irem para a escola (ou para a tropa?).

Solução: prazo fixo de 2 anos, a partir do qual não será possível usufruir. Nem mais um dia ... a lei será para cumprir.

Puna-se, fixe-se, limite-se e teremos toda a gente na linha ... mesmo que a grande maioria lá esteja e não seja abusadora.

E sempre a bem da nação, que não pode pactuar com esta gente que de tudo se aproveita ...

Quantas são? Quantos são?

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

50 - 1

Heliotrópio - Designação de várias plantas que se viram para o Sol, quando este se acha acima do horizonte (Dicionário Texto Editora - 2009)

"Dr. Google" - 49 anos de casamento: bodas de Heliotrópio.

terça-feira, 29 de julho de 2025

Palavras bonitas

Elogio do sorvete

come sorvetes  velha  come sorvetes
que a morte chega mais cedo do que pensas
bem melhor será partires toda fresquinha por dentro
com tanto fogo aceso nas paredes de Maio

além disso ficas mais bonita (tu que já és
de novo uma criança) com a bolacha esguia
a arrefecer-te os dedos frios e a língua
a saltitar na palidez dos lábios

come sorvetes  velha  come sorvetes   que
tirando os chocolates do nosso tio
Fernando Pessoa
os sorvetes são a melhor metafísica
e tornam os dentes incrivelmente brancos

Poesia reunida
o pouco que sobrou de quase nada
Manuel Alberto Valente
Quetzal (2015)