terça-feira, 10 de junho de 2025

10 de Junho

Ao ouvir, hoje, o resumo dos discursos de Lídia Jorge e Marcelo Rebelo de Sousa, no âmbito das comemorações do 10 de Junho, lembrei-me de um estudo que a minha filha me ofereceu e sobre o qual falei aqui, já lá vão uns anitos.

O estudo indica que, como qualquer português, tenho raízes que vão da Ásia, passam pela África, viajam pela Europa e "aterram" aqui, neste "jardim à beira-mar plantado". 

Se, ao invés de nos preocuparmos com as origens, a cor, a religião de cada um dos que por cá habitamos, muitos em condições miseráveis e vergonhosas, procurássemos colaborar na integração de todos, sem preconceitos, ódios, invejas e aproveitamentos vis, talvez conseguíssemos um Portugal maior e mais feliz.

"Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
 A vista vossa tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante.
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter inveja."

Os Lusíadas
Canto X (final)
Luís de Camões

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Liga das Nações

Mais um dia grande para o futebol nacional, com a selecção principal a conquistar a Liga das Nações pela segunda vez, contra as perspectivas desenhadas pela crítica sabedora. E foi muito bonito de ver a capacidade de Nuno Mendes, numa equipa que procurou sempre, com "ganas", vencer "nuestros hermanos".

domingo, 8 de junho de 2025

Tempo ... de praia

(Re)começaram as conversas da praia, acompanhadas pela nortada "fozeira", acentuando as dificuldades de audição que vão aumentando à medida que o tempo percorre o caminho inexorável ... para o aparelhinho do Goucha.

A água, ao contrário do que acontecia há uns anos, está muito fria, o sol anda fraquinho, a camisola aconchega o tronco dos conversadores  presentes e não parece nada incomodada com isso. O banho fica para a próxima.

Ainda é cedo, que diabo. Nem sequer há banheiro ... Calma, que vai ser bom ... verão.

- E o vento, ai, o vento está bem pior que o ano passado.

Falou-se da inteligência artificial, da falta de sentido crítico, das eleições, dos apertões de Marcelo, de abortos e desmanchos, do que era e do que é, do que lá vai e do que estará para chegar, deste e daquele, disto e daquilo. Tudo tratado e nada resolvido, como sempre.

- Começou a chegar a "fauna" da tarde. Está na hora de a "Cacilda" ir tratar do almoço. Até amanhã ... se o tempo quiser!

sábado, 7 de junho de 2025

Palavras bonitas

No desvario
Do sonho me socorro
E nele percorro
O denso frio
Da distância,
Os delirantes lugares da demência,
A delicada fragância,
A seda e o brocado
Desenhando o fulgor e a fluorescência
Do teu corpo semeado
De azul e maresia ...
Meu castelo de vento,
Meu portento, Meu mar sulcado
E para sempre arado
De louca fantasia! ...

Pequena elegia em busca de Moad
Lino Sebastião
cordel d' prata (2025)

sexta-feira, 6 de junho de 2025

Paz e lirismo

E se, de repente, começasse a surgir alguma coisa com nexo daquela cabecinha amarelada que comanda os destinos americanos, gritaríamos todos:

- Milagre!

Desenganem-se. Não vai acontecer, por muito desejável que seja e muitas rezas ocorram. Continuaremos a ouvir muitas "bacoradas" e um sem número de alarvidades que trazem à memória a frase do antigo seleccionador nacional de futebol Luiz Filipe Scolari:

- E o burro, sou eu?

A guerra, que tinha o destino traçado, terminaria mal ele sentasse os glúteos no sofá da Sala Oval e nunca teria começado se ele se tivesse mantido como chefe da nação naquele acto eleitoral tão festejado no Capitólio, afinal continua, agravada, e sem fim à vista. A faixa de Gaza está quase em condições de serem iniciadas as obras do resort de luxo, faltando apenas acabar com os palestinianos.

Entretanto, o cavalheiro holandês que apelidou os portugueses de gastadores e boémios, pede encarecidamente que todos os países aumentem a sua contribuição para a NATO e, ao que tudo indica, o nosso já está a escarafunchar no mealheiro para lhe fazer a vontade.

Como toda a gente sabe e a história confirma, a solução é aumentar o esforço militar e deixar que essa coisa da paz se mantenha como uma miragem dos líricos.

segunda-feira, 2 de junho de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

Biblioteca acima das possibilidades de leitura

Uma biblioteca cheia de livros que não foram lidos - sabendo que muitos deles nunca o serão - é uma biblioteca enorme, porque contém em si a semente da possibilidade. É imensa porque inclui desejo. Quem a criou tinha um desejo acima das suas possibilidades, e isso define o leitor: a sua ambição. Nunca concretizaremos plenamente os nossos desejos, mas o tamanho da biblioteca pode evidenciar o tamanho da ambição e, por reflexo, o tamanho do leitor. Um leitor tímido terá um ou dois livros por ler, um leitor ambicioso terá logicamente mais. Em japonês, existe uma palavra para a pilha de livros por ler: tsundoku.

Seria expectável que um grande leitor fosse aquele com menos livros por ler na sua biblioteca, pois leu muitíssimo, mas não é isso que acontece: o melhor leitor tem sempre cada vez mais livros por ler. Quanto mais lê, mais essa lista aumenta.

Children's afternoon at Wargemont, 1884 - PIERRE AUGUSTE RENOIR
O vício dos livros II
Afonso Cruz
Companhia das Letras (2025)

domingo, 1 de junho de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Por norma, a leitura não tem uma gratificação imediata e contraria as nossas características gregárias, isolando-nos dos outros e do mundo, impondo algum silêncio, exigindo atenção, concentração e, como se tal não bastasse, obriga ao esforço da descodificação. Ao contrário de outras formas de arte, como a música, a pintura ou o cinema, a leitura não se oferece directamente à sensorialidade - exige um processo cognitivo, converter letras em cenários mentais, converter letras em vozes, rostos, emoções e paisagens. Ler dá trabalho. Essa exigência torna a leitura uma arte activa, mais próxima da tradução do que da fruição imediata, e, talvez por isso, quando funciona, seja tão poderosa: porque é o leitor quem completa a obra. A leitura é uma arte de co-autoria.

Sendo difícil ultrapassar os primeiros obstáculos que a própria leitura impõe aos seus possíveis futuros amantes, as medidas para aumentar o número de leitores têm resultados tíbios. Repare-se que esse número deveria ter aumentado estrondosamente com a diminuição da iliteracia, mas tal não se verificou. Nunca houve um entusiasmo esfuziante com a leitura; pelo contrário, sempre foi um fenómeno sóbrio, que vai tendo mais leitores, é certo, mas de forma lenta, ou muito lenta. De todos os que foram alfabetizados, poucos se tornaram leitores assíduos. (...)"

O vício dos livros II
Afonso Cruz  
Companhia das Letras (2025)

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Prova real

Estava um calor "de ananases", talvez parecido com o que se sentiu, e ainda se sente, no dia de hoje. Sem nuvens no céu nem a nortada oestina tão familiar, pareceria que se estava em pleno Alentejo. Havia necessidade de uma deslocação à outra quinta, para resolver um qualquer problema cuja origem já não recordo. Devia ser importante. O patrão, habitualmente, decidia sem se deslocar lá.

O exame de condução tinha sido realizado com êxito e o documento, em cartolina avermelhada, havia chegado poucos dias antes. A notícia tinha sido transmitida, com ênfase, a quem de direito. A receptividade foi a habitual: sem comentários.

- Hoje levas tu o carro.

Já tinha pegado no Peugeot 504 algumas vezes, mas apenas para pequenas arrumações, na garagem ou na procura da sombra, com a conivência do motorista da casa. Isso ele não sabia e não era eu que lhe iria dizer. Ainda se zangava e alterava a decisão que havia tomado. "Patrão manda, marinheiro faz ... "

É fácil de entender que os nervos eram muitos e imenso o medo de falhar. O Peugeot era, na época, uma "bomba" topo de gama, privilégio de quem tinha grandes posses. Espaçoso, de um verde claro discreto, estofos muito macios, em pele, espaço para copo e garrafa no meio, rádio e leitor de cassetes "cartucho". Até chauffage tinha ...

O patrão instalou-se no lugar do pendura, escolheu a música, clássica, como sempre, e a viagem iniciou-se rumo ao Negrelho. Vidros todos abertos, para que o ar circulasse e diminuísse um pouco o desconforto causado pela tal temperatura nada habitual na região.

O braço esquerdo apoiou-se na janela, deixando que os dedos dessa mão apoiassem o volante. O trabalho era todo executado pela mão direita, que guiava e engrenava as cinco mudanças, dando aquele ar importante de quem sabe bem o que faz e não está nada constrangido.

O trânsito era residual e a viagem correu bem, com o "motorista" a sentir-se "inchado" com o desempenho.

- Não estás mal! Mas olha que o braço é para o volante, não para a janela.

terça-feira, 27 de maio de 2025

Palavras

Finalmente, a senhora que manda na União Europeia acordou da letargia e disse qualquer coisita sobre a catástrofe humanitária que o Bibi israelita está a levar a cabo.

Não foi muito assertiva nem teve a violência verbal que se justificava perante tamanha crueldade que o homem (?) tem promovido mas, valha-nos isso, falou. 

sexta-feira, 23 de maio de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...)

Mãos estranhas enterraram no dia seguinte o corpo mirrado do pobre aventureiro na terra estrangeira onde devia pagar o preço das suas aventuras.

E como sem mensalidades o Colégio de Santo António não ensinava nada a ninguém, passados meses, o pequeno Sérgio foi despachado em terceira para Penedono.

O Gaudêncio velho, então, teve pena dele e pô-lo a guardar ovelhas no Farrobo.

Pastor, que foi por onde o Senhor Ventura começou."

O Senhor Ventura
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Sufrágio

Cada eleitor teve direito a manifestar a sua escolha e fê-lo sem pressões, no recato da urna, com sigilo garantido sobre o sítio onde decidiu marcar a sua cruz.

No final da votação, logo a seguir às 19 horas, os membros das mesas contaram os votos, elaboraram a acta e fizeram chegar os resultados ao patamar superior. A freguesia juntou os votos, a autarquia coligiu a soma concelhia, o distrito somou tudo, dividiu pelo método de Hondt e apurou os deputados eleitos. Todos cumpriram com afã as tarefas que lhes estavam confiadas e o país soube dos resultados finais ainda antes de o dia terminar.

Os resultados não se saboreiam nem se digerem: aceitam-se enquanto as regras forem claras, iguais para todos e não haja suspeitas de fraude ou de "chapeladas", como nos tempos "da outra senhora".

Custa a perceber? Custa, mas a cada um só cabe uma cruz ...

sábado, 17 de maio de 2025

Dia de reflexão

Reflectindo, como sempre, ainda que a decisão esteja tomada há muito e o tipo do espelho que me saúda todas as manhãs tenha confirmado a minha escolha como correcta.

De acordo com as opiniões expressas pelos grandes "sabões" analistas, faço parte do grupo que vota nos antigos, mantendo a escolha e não sendo influenciado pelas "modernices", "preces" ou "refluxos". As sondagens dão como adquirido o resultado final, baseadas nas largas consultas levadas a cabo, nenhuma das quais, em 50 anos de eleições, me contemplou. Tal como no totoloto, nunca fui bafejado pela sorte ... Paciência!

No final do dia de amanhã, depois de cumprido esse dever cívico fundamental e de cuja ausência cada vez menos se lembram, veremos se as previsões eram de base científica ou apenas palpites para "encher chouriços". 

terça-feira, 13 de maio de 2025

Tempo

Em todo o lado, em quaisquer situações, com mais ou menos pressa, com muita ou pouca gente, o tempo é determinante e mandante, mesmo quando a tarefa encomendada é passear e usufruir sem pestanejar.

Por vezes custa. As pernas refilam, os ombros doem, os joelhos queixam-se, a coluna lamenta-se, o corpo pede regresso ao hotel e repouso bem esticado. Mas ... a teimosia é, quase sempre, uma excelente qualidade.

Perante tanta coisa maravilhosa, o corpo acomoda-se e deixa a vista extasiar-se. Antiga na história, complexa e cheia de sobressaltos, Praga é, sem qualquer dúvida, uma cidade muito, mas mesmo muito bonita!

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Mãe

Hoje era dia de cantar os parabéns, se ...

Seriam cento e duas velas, poucas para equivalerem a tua iluminação!

terça-feira, 6 de maio de 2025

Pausa

Uma paragem para retemperar energias que esta coisa de (não) trabalhar também cansa. 

Apanhar aviões, levantar cedo, andar a pé, escolher ementas, ver museus, olhar paisagens, espreitar pessoas, adivinhar diferenças e comportamentos, ser "cusco", dá trabalho ... mas vale a pena!

Se tiver tempo livre, vou meditar sobre a forma como a campanha eleitoral estará a decorrer. 

Naturalmente que levo dois livrinhos para os aviões e tempos livres.

domingo, 4 de maio de 2025

Palestina

A tragédia continua e parece já instalada na normalidade dos que, longe, olham para as imagens das televisões, devidamente alertados de que elas "poderão afectar as pessoas mais sensíveis".

Custa a entender ou, melhor, é impossível compreender que, descendentes de um povo martirizado e quase levado ao desaparecimento pela selvajaria hitleriana, colaborarem ou permitam que alguns, déspotas, levem a cabo o morticínio, a tiro e à fome, de todo o povo palestino.

... E a caravana europeia passa pelos intervalos da chuva!

terça-feira, 29 de abril de 2025

Apagão

Ontem voltámos ao antigamente! 

Apenas na falta da electricidade, esclareça-se de imediato, para não haver confusões. Uma avaria, ao que parece em Espanha, "deitou tudo abaixo" e os interruptores e afins deixaram de funcionar.

Não houve televisão, nem Facebook, nem Instagram, nem Tik-Tok, nem Twiter, nem chamadas telefónicas em condições. Procuraram-se as lanternas e os rádios de pilhas, as velas de cera e os fósforos, estes desaparecidos algures para o fundo de uma gaveta que não se sabe qual nem se vislumbra onde. Valeu o isqueiro a gás ...

Candeeiros a petróleo quase de certeza que ninguém acendeu. Mesmo que existisse lá em casa um belo exemplar adquirido numa qualquer feira de velharias, dificilmente teria pavio e muito menos o petróleo imprescindível. Já nem mercearias há, quanto mais as bombas manuais que debitavam para a garrafa um litrinho desse líquido precioso que tanto dava à luz como acendia as brasas.

Sempre muito preocupado consigo, o "povo" pegou nas notinhas do mealheiro e foi a correr ao supermercado encher o carrinho com tudo, da água ao papel higiénico, das conservas às cervejolas, e, já agora, duas ou três garrafitas de tintol, mais uns pacotes de açúcar, de arroz, feijão frade e grão de bico, tudo o que lhe pareceu necessário para encher a despensa ... não vá o diabo tecê-las!

Quem se atrasou ... temos pena! Fossem mais espertos ou tivessem mais "carcanhol" em casa.

Houve lágrimas por não ser possível carregar o aparelho que, para além de todas as coisas bem mais importantes, também serve para fazer chamadas telefónicas.

- Isto nunca aconteceu! Não é possível viver assim!

Pois! Mas aconteceu e não foi há 100 anos!

Aguardemos, sem pressa, a explicação que uma qualquer comissão de peritos entretanto nomeada, há-de proporcionar-nos uma visão clara sobre o acontecido. E dirão os mais cépticos: de Espanha, nem bom vento nem bom casamento. 

sábado, 26 de abril de 2025

Impulsos

Estive quase, quase a "roubar", uma vez mais, o cartoon que António publica no Expresso desta semana. A qualidade do desenho é a do costume, óptima; o tema, actual e acutilante, mas ...

Disse cá para comigo: até tu queres dar visibilidade ao "espertalhão"?

- Nem penses, murmurou a voz interior que me acompanha e vai controlando os impulsos, servindo de moderadora das asneiras que vão surgindo na cabeça, cada vez mais na razão inversa do cabelo, branco, claro.

A solução não é deixá-los a falar sozinhos, ou talvez seja, quem sabe. A casinha, afinal, não tem trinta metros quadrados nem é pouco mais que uma barraca num qualquer Casal Ventoso. No debate, isto foi dito, redito, repisado, mantido, com uma voz colérica e um olhar afirmativo, apelando à injustiça e à comparação com a sua desdita. Coitadinho ...

No dia seguinte, em conversa amena na tarde da TV, a mesma voz, agora com tonalidade angelical, e o olhar, docinho e amável, transmitiam que, afinal, fora apenas um lapso na divulgação da medida, talvez porque a casa nem sequer era dele e sim da sua consorte. Clarinho ... como a água da piscina!

Chega!

"A mentira tem perna curta!"

"Vozes de burro não chegam ao céu!" 

sexta-feira, 25 de abril de 2025

quinta-feira, 24 de abril de 2025

Confusões

O respeito pelo Papa Francisco e pela sua morte merecia que o Governo tivesse um pouco mais de atenção e cuidado, e não confundisse as comemorações do 25 de Abril com o infeliz acontecimento.

Era o mínimo exigível, mas cada vez há mais gente que não se enxerga ...

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Dia Mundial do Livro

Assinala-se hoje o Dia Mundial do Livro. Talvez seja apropriado um excerto de um que tem como título LIVRO e que trata um tema muito actual por cá e tão esquecido do que, antanho, se passou com muita gente de cá que abalou para lá, seja isso onde tenha sido.

(...) 

"(1967)

A Adelaide queria tratar de vida.

Acordava com as voltas da Libânia, do outro lado do lençol, a dar papa à menina. A essa hora, o marido da Libânia estava maldisposto, tinha frio nos pés ou insatisfazia-se com miudezas. Seriam umas cinco da madrugada. A Adelaide não precisava de despertador, mas tinha um relógio de pulso, a que dava corda antes de adormecer e que pousava sobre um caixote, à cabeceira do colchão. A Adelaide dizia qualquer palavra sumida antes de tirar o lençol que estava suspenso numa corda, superfície branca de sombras, e que dividia a casa. Às vezes, quando a Libânia lhe pedia, a Adelaide levava a menina à escola maternal antes de ir para casa da patroa.

Seriam umas seis e meia quando abria o portão, a cadela andava solta no jardim e vinha sempre recebê-la, de rabo a abanar. A Adelaide nunca tinha visto uma cadela daquela raça, era uma cadela fina, chamava-se Princesse, mas a Adelaide, baixinho, chamava-lhe Princesa, fazia-lhe festas por detrás das orelhas e dava-lhe a mão a lamber. Em certos dias, ao fim da tarde, a patroa vestia-lhe uma casaca e levava-a a passear. A Adelaide tinha custado a habituar-se a essa moda. A cadela tinha bom pêlo, não precisa de casacas, coitadinha.

Na França, a Adelaide tinha-se admirado com muito. Nunca se esquecia da primeira vez que entrou num supermercado. Imaginou a reacção da velha Lubélia se alguma vez visse um supermercado daqueles. De manhã, à chegada, a Adelaide abria as janelas da cozinha da francesa e começava a preparar o pequeno-almoço, os copinhos de loiça onde enfiava os ovos malcozidos. Quando a francesa e o marido acordavam, quando se sentavam de roupão na mesa posta da sala, um ou outro podiam chamá-la pelo seu nome em francês e pedir-lhe qualquer coisa que faltasse. A Adelaide sabia utilizar a máquina torradeira. (...)"

Livro
José Luís Peixoto
Quetzal (2010)

terça-feira, 22 de abril de 2025

Diálogos

Devemos ser únicos no mundo. Assertivos e concretos, dizemos sempre tudo de forma clara e sem deixar quaisquer dúvidas a quem nos interpela ... A única dificuldade é encontrar alguma coisa que seja, tenha sido ou venha a ser boa ou bonita!

- Então como é que isso vai?

- Vai-se andando, menos mal. Olha, antes assim que pior ...

- Mas tens algum problema?

- Claro que não! É a vida!

- E o tempo, que achas tu desta porcaria? 

- Com esta idade, não me lembro de alguma vez ter visto uma coisa assim ...

Chove muito:

- Maldita chuva que nunca mais passa! Vê se vem o calor que estou farto disto!

Chega o Verão:

 Isto está de ananases. Nem uma brisazinha, ao menos ...

Vem o vento:

- Malvada ventania que nunca mais pára! Nem uma pessoa consegue endireitar-se ...

- E que tal o emprego? É bom? Vai bem?

- Bem, podia ser bem melhor ... mas até nem é muito mau ...

- E o jogo de ontem, viste? E gostaste?

- Não foi mau, ganhámos! Mas podia ter sido muito melhor ... podíamos ter dado seis!

- Mas olha que tivemos sorte. Se aquela bola dos outros tem entrado, não sei o que seria! 

sábado, 19 de abril de 2025

Palavras bonitas

ÂNSIA

Não me deixem tranquilo
não me guardem sossego
eu quero a ânsia da onda
o eterno rebentar da espuma

As horas são-me escassas:
dai-me o tempo
ainda que o não mereça
que eu quero
ter outra vez
idades que nunca tive
para ser sempre
eu e a vida
nesta dança desencontrada
como se de corpos
tivéssemos trocado
para morrer vivendo

Raiz de orvalho e outros poemas
Mia Couto
Caminho (1999)

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Lápis

O lápis é a minha ferramenta de escrita preferida. E, apesar disso, nem todos me satisfazem. A lapiseira de 0,5 mm é a que cumpre os objectivos sem rebuço e com a qualidade esperada. O antigo Viarco ou similar tem de ser muito bem afiado, o que se apresenta cada vez mais difícil. As afiadeiras perderam qualidade e os interiores também. Cada vez é mais provável o bico partir-se, obrigando a mais uns centímetros de madeira cortada, sem obter o efeito pretendido: aquele bico bem fininho, que escreve o que se deseja com a elegância pretendida, ainda que o papel escrito marche para o lixo, cumprida que seja a sua função.

Manias, dirão muitos, com toda a razão.

Mesmo assim, continuo a adorar ter à mão o "lápis de pau" da meninice ou a lapiseira "adulta". Com eles dou largas à vontade de escrever ... patetices!

segunda-feira, 14 de abril de 2025

Olhares

A visita havia sido recomendada pelo meu amigo CP, com entusiasmo. E confirmou-se!

Mal se transpõe a porta de entrada, o candeeiro dita, de forma clara, que estamos num sítio onde o bom gosto e a cultura são quem mais ordena.


Adquiridos os ingressos, com o desconto de 50% oferecido aos "jovens", deambula-se por várias salas - não sei dizer quantas - distribuídas por quatro galerias. As duas primeiras estão no rés-do-chão e mostram uma "imensidão" de obras, de inúmeros artistas, de José Malhôa a Paula Rego, passando por Eduardo Viana, José de Guimarães, Júlio Pomar, Rui Chafes, Julião Sarmento, Almada Negreiros, Sarah Afonso, Eduardo Batarda, Carlos Botelho, Mário Botas, Cruzeiro Seixas e tantos, tantos outros.


Nos dois andares seguintes, os espaços são dedicados às exposições temporárias. Agora, estão por lá, na Galeria 3, Antropoceno - em busca de um novo humano?, que se manterá até Setembro, e na Galeria 4, Guerra - Realidade, Mito e Ficção, que permanecerá até Outubro. Bem diferentes das duas primeiras, mas deveras interessantes.


Foram quase três horas - que passaram depressa -, a apreciar a colecção reunida por Armando Martins. Em boa hora, este homem decidiu partilhá-la e colocá-la à disposição de todos os olhos que a queiram admirar.

Um jardim bonito, também com algumas obras e um hotel de 5 estrelas (só mirado por fora) completam o quadro de uma recuperação que, aos olhos de um leigo, está fantástica: MACAMMuseu de Arte Contemporânea Armando Martins, na "velha" Rua da Junqueira, 66, em Lisboa.

sábado, 12 de abril de 2025

Sonhador

Sempre actual!

Que a viagem seja marcada com brevidade e a nave encha, com tarifas nos bilhetes!

sexta-feira, 11 de abril de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

Antes de perceber bem o que estava a acontecer - tudo o que te conto parece avançar aos saltos, eu sei, como uma pantera que desmaia e volta a falar no exato momento em que acorda -, já estava a caminhar pelas ruas estreitas daquele lugar. Os estrangeiros que nos levavam procuravam que caminhássemos o mais rapidamente possível. As ruas eram desenhadas como linhas que separavam os vizinhos uns dos outros. Muito brancas, cobertas de palha, as casas de um lado olhavam para as casas do outro lado. Era muito estranho.

Achei, além disso, as casas muito coladas umas às outras, muito diferentes das da minha aldeia, que tinham espaço entre si. Infelizmente, antes de ter tempo de as poder observar com atenção, já tinham desaparecido.

Não é bem que não tenha tido tempo. Andar com os ferros nos tornozelos custava muito, muito mesmo, e jamais me poderia habituar àquilo. Apenas conseguia dar passinhos miúdos e titubeantes. Mal avançava uma perna, ela era dolorosamente travada pelos grilhões, tinha de fazer avançar a outra, e assim por diante. Em vários momentos pensei que ia cair. É muito difícil aprender a andar presa. Além disso, de pé, os ferros marcavam-me de outra maneira, golpeavam-me os tornozelos mais do que até aí, e ainda não achara forma de suportar aquela dor nova. Retraía a perna cada vez que ela avançava um pouco, pois logo recebia a facada das grilhetas. As minhas pernas eram martelinhos tontos espetados por canivetes.

Com as nossas cabeças amarradas umas às outras por um cabo, obrigavam-nos a andar todos ao mesmo ritmo, o que na prática era impossível. Sentia medo de tropeçar a cada passo, ou que aparecesse uma pedra na qual não tinha reparado, ou um buraco onde poderia cair. Tinha de concentrar-me no chão.

- Concentra-te no chão. Concentra-te no chão. Concentra-te no chão.

O mel sem abelhas
Judite Canha Fernandes
Gradiva (2025) 

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Rotinas

Saiu do emprego  e aguarda-o a tarefa diária, que lhe deve dar muito prazer e, quase de certeza, o faz mais feliz do que o dia de trabalho burocrático concluído há pouco.

Deve ter em casa um pequeno armazém de alimentos para gatos, aos quais se dedica com grande afã e carinho, mas apenas aos da rua ou aos que a frequentam. Ainda antes das seis já mudou de roupa, pegou no carrinho das compras e lá vai ele. Corre as ruas do bairro, salta muros, invade quintais, compõe cartões que servem de abrigo ao frio das noites, muda a água dos recipientes, coloca comida nova. Os bichanos conhecem-no bem e esperam, ansiosos, a sua chegada, sentados à beira dos locais onde, sabem, o benfeitor aparece.

Lá pela hora do telejornal, regressa a casa, andando bem mais devagar do que no começo, cansado. O saco está vazio, o ego vai, de certeza, bem cheio.

Amanhã repetirá a tarefa!

quarta-feira, 9 de abril de 2025

Água

Em Abril, águas mil!

Amanhã, de acordo com as previsões do IPMA, haverá mais. E quão necessária ela é e sempre foi, todos o sabemos. Má, má, é a que muita gente mete ...

Era um mentiroso compulsivo. Mesmo quando a estória era verdadeira, contada pela sua língua tinha sempre um pontinho da sua lavra, inventado ao momento e debitado com o ar mais sério do mundo.

A "plateia" conhecia-o bem e sabia o que a casa gastava. Dava-lhe uns minutos de atenção, durante os quais ele esticava o peito, olhando bem lá ao fundo, no infinito, onde a paisagem lhe abria o cérebro. As estórias eram sempre corriqueiras, mas ele entusiasmava-se e ocupava o "tempo de antena" sem largar o "microfone".

- E não querem saber o que aconteceu ontem quando ...

- Já na semana passada, o Fulano tinha feito ... 

A paciência começava a esgotar-se nos ouvintes. Todos sabiam que ele exultava com aqueles discursos e, tirando isso, não era "mau diabo", mas ... já chegava. Um, mais descarado, começava a arregaçar as calças e a exibir as canelas nuas.

- 'Tás a gozar? Não acreditas? Olha qu'eu não minto ...

- Todos sabemos que, mais ponto menos traço, tu dizes sempre a verdade. Porém, "cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém". E, assim, a água que estás a meter só me molha os sapatos e as meias!!! 

domingo, 6 de abril de 2025

Realidade ?!

Com o mundo "tarifado" pelo homem da popa, vamo-nos entretendo com os preâmbulos da campanha eleitoral que, a 18 de Maio, há-de determinar quem assumirá o poder nos próximos quatro anos, se ...

Há sondagens para todos os gostos e opções, opiniões muito bem fundamentadas com o enorme saber de todos e de cada um, comentários a esmo, certezas absolutas sem hipóteses de serem contrariadas. No tal dia, a noite trará a tradução da vontade dos que se derem ao trabalho de ir fazer a cruzinha. Apesar da manipulação a que está sujeita, será determinante e a única que vale ... por enquanto.

Nessa noite, alguns comentadores "sabões" meterão a "viola no saco", outros exultarão com a alegria de terem acertado na opinião espremida e exprimida antes, o que lhes garantirá a respeitabilidade futura e a continuação da "cátedra".

Desaparecerão o Bolhão e o betão, o abono de família e o IRS, as rendas de casa, os trabalhadores e o povo, até que a nova Assembleia se instale nas cadeiras de S. Bento e se regresse à rotina.

Qual o futuro Governo? Ver-se-á depois! Prognósticos, como dizia o outro, "só no fim do jogo" ...

sábado, 5 de abril de 2025

Palavras bonitas

ELDORADO

Galhardo e galante,
    Um cavaleiro andante,
Ora ao Sol, ora ensombrado,
    Há longo tempo seguia,
    Em alegre cantoria,
Procurando o Eldorado.

    Porém, velho se faz
    Cavaleiro tão audaz -
E o seu coração, pesado,
    Se tolda - pois não achou
    Terreno por onde andou
Que parecesse o Eldorado.

    E quando então, finalmente,
    Se depara, já descrente,
Com um peregrino vulto -
    Lhe pergunta: <<Ó sombra errante, 
    Diz-me tu, onde se oculta
O Eldorado distante?>>

    <<Sobre as Montanhas
    da Lua,
Descendo o Vale Ensombrado,
    Vai, galopa com bravura>>,
    Lhe responde a sombra escura,
<<Se procuras o Eldorado.>> 

Obra Poética Completa
Edgar Allan Poe
Tinta da China (MMXXV)

quinta-feira, 3 de abril de 2025

Cores

O horizonte a provar que "não há mal que sempre dure nem bem que nunca acabe".


quarta-feira, 2 de abril de 2025

Regresso

De regresso à base, tudo como dantes, até o quartel em Abrantes ... e a chuva, que parece ter ido de férias na mesma altura, voltou hoje. Invejosa!

Afinal, decorridos estes (poucos) dias de ausência, o problema de Montenegro mantém-se por esclarecer; Marcelo continua a comentar tudo e a pedir a paz entre a Federação de Futebol e o Comité Olímpico, cujos "comandantes" estão a dar lições de desportivismo sério e exemplar; o homem da popa amarela lá vai "tarifando" e "ordenando" o fim da guerra e dos livros de que não gosta.

Mas houve mudanças bem agradáveis: o jardim está mais florido, anunciando a chegada da Primavera; nas ginjeiras vão surgindo muitas folhinhas verdes; apareceram morangos bem vermelhinhos. Confirma-se, uma vez mais que, pelo menos em parte,  "o mundo é composto de mudança".

sábado, 29 de março de 2025

sexta-feira, 28 de março de 2025

Arte

O corvo visita todos os lugares e acompanha as visitas. À falta de melhor, até as mãos erguidas em prece pela mão, brilhante, do artista, servem para descansar um pouco e apreciar uma grande paisagem museológica.

quinta-feira, 27 de março de 2025

Surpresa

Alguém imaginaria ser possível a capital do Algarve chegar à homónima do Azerbaijão antes de mim?

Mas chegou e por cá vai permanecer, sem visto nem passaporte.

quarta-feira, 26 de março de 2025

segunda-feira, 24 de março de 2025

Babosices

Vão ser mais de meia dúzia de milhares de quilómetros, cerca de uma dezena de horas no ar, quatro horas de diferença horária, uma civilização e um país completamente novos, com tudo o que isso tem de aventura.

Fácil não vai ser, mas vai valer a pena!

À espera, estarão filho e nora, e dois netos lindos, enormes, gentis, que serão abraçados sem "dó nem piedade", com as saudades que se foram acumulando desde o Natal.

A noite de hoje será, ainda, "portuga". A de amanhã trará sonhos em azeri.

sexta-feira, 21 de março de 2025

Dia Mundial da Poesia

A FORMA JUSTA

Sei que seria possível construir o mundo justo
As cidades poderiam ser claras e lavadas
Pelo canto dos espaços e das fontes
O céu o mar e a terra estão prontos
A saciar a nossa fome do terrestre
A terra onde estamos - se ninguém atraiçoasse - proporia
Cada dia a cada um a liberdade e o reino
- Na concha na flor no homem e no fruto
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é o meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo

O nome da coisas
Sophia de Mello Breyner Andresen
Caminho (2004)

quinta-feira, 20 de março de 2025

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Viver será também a nossa contribuição privada para a estatística? E por que os jogos exercem sempre um fascínio tão grande? E a guerra, será ela o jogo dos jogos? <<A guerra é inimiga do desenvolvimento sustentado>>, gritava kota Venâncio já fora de si. <<Não, ó kota, nem pensar>> interpelava-o Samuel Zau a fazer cócegas à inteligência. <<Este é apenas um país em que a morte está muito concorrida, mas isto passa>>. E, Zico, alheado da discussão, espreitando da linha de fundo, entregava-se a outro dos seus passatempos preferidos, que era encontrar relações secretas entre a vida e a matemática. A vida é uma curva num espaço de n dimensões ou será uma série convergente composta por termos lineares? Sim, uma série convergente, talvez seja isso. Serviço mais aulas mais Mity mais casa mais cinema mais amigos mais festas mais o Homem-Jibóia mais discussão sobre a guerra, tudo isso não seria uma série de Fourier? <<E sabes que mais>> gritava kota Venâncio <<a minha esperança, a minha última esperança é que, com o desenvolvimento da sociedade, a guerra se converta num tabu, é a única forma de acabar>>. Pausa geral. <<Um tabu? Explica lá isso, ó kota, troca-me essa abstracção por miúdos>> contrapunha Samuel Zau. <<Sim, um tabu>> repetia o kota Venâncio Seboleiro. Fez uma pausa, inspirou o ar da tarde morna. <<Se olhares para a evolução das sociedades chegou um período em que o incesto, em função dos resultados negativos que produzia, foi banido, virou um tabu e pronto, a endogamia acabou. Agora explica-me por que isso não pode suceder com a guerra?>> interrogava o kota, acentuando com clareza a pertinência do argumento. Mas Samuel Zau não estava convencido, <<Ó kota, isso não pode ... isso é mambo pesado ... a guerra faz parte da natureza humana... onde há homem há guerra... acabar a guerra é como pedir esmola a um ladrão ou pôr um vegetariano a chefiar um talho>>. E o kota, sempre em forma, a ripostar: <<Mas aí é que está o mambo. O incesto produzia algumas dezenas de crianças atrasadas numa sociedade mas a guerra produz milhares, a guerra trivializa todas as mutilações e afecta duas, três gerações, que se perdem completamente. Isto não é irracional?>>(...)"

Desconseguiram Angola
António Costa Silva
Guerra & Paz (2025)

quarta-feira, 19 de março de 2025

Dia do Pai

Logo pela manhã, bem cedo, os meus filhos deram-me os bons dias, um lá de longe, bem longe, a outra bem perto, numa visita relâmpago antes da labuta.

Eu, que já não posso dar os parabéns ao meu - faria hoje 103 anos -, deixo-lhe um pequeno poema do grande Torga.

MEMÓRIA

Chove.
Mas, afinal, já chove há muitos anos ...
O mundo dos meus pés nunca se move
Sem chuva, tristezas e desenganos ...

Apesar disso, 
Lembro-me perfeitamente bem
Do luminoso sol de certo dia ...
Um lindo sol que doirava
Num toco que rebentava
Uma folha nascia.

Diário I
Miguel Torga
Gráfica Coimbra

terça-feira, 18 de março de 2025

Tempos que correm ...

Passaram cinco anos sobre o suplício que foi a pandemia do vírus "Corona"; a guerra na Ucrânia já ultrapassou os três; o conflito israelo-árabe (fica bem, escrito assim) dura há quase oitenta. Por mais que o Papa apele, não parece que alguém o ouça nem que haja alterações, ou melhor, decisões que acabem com este mundo de interesses, hipocrisias e "lata".

Hoje, mais umas centenas de palestinianos foram mortos; um sem número de ucranianos e russos devem ter seguido o mesmo caminho; outros "muitos" pereceram pelo resto do mundo e já nem notícia são.

A ONU e o "nosso" Guterres nem se ouvem, mas continua a haver muita esperança: o cavaleiro russo e o americano da popa amarela "namoraram" mais de duas horas. Foi só ao telefone, claro, mas há muitos casamentos que começam assim ...

domingo, 16 de março de 2025

Registos

Há 51 anos, uns quantos "rapazes" apressados marcharam sobre Lisboa e mostraram a toda a gente que algo ia mal no nosso "reino" e que era imperioso mudar.

A data ficará na História, registada com uma nota de rodapé, importante, mas não fundamental.

Contudo, sem dúvida que merecerá bem mais destaque do que a "notazinha" que há-de referenciar o Governo de Montenegro, agora caído da tripeça.

Mudar é a palavra que os dois acontecimentos terão em comum nos registos históricos.

sábado, 15 de março de 2025

Aperitivos

O espumante, branco, era bruto e fabricado na adega onde iria decorrer o evento. Há já dois dias que havia sido colocado no gelo, em grandes alguidares, para que se mantivesse fresco. Ali não havia frigorífico e as visitas eram importantes (a fina flor da alta sociedade). Estavam muito habituadas ao champagne francês. Não se podia correr o risco de não gostarem do nosso.

Na semana anterior, tinha havido uma grande festa citadina em Cascais e o "campo" não podia ficar mal. Tinha sido escolhida a adega, para recrear um ambiente rural que a maior parte desconhecia.

Os aperitivos - pinhões, tremoços e pevides - despertariam a sede para que o espumante lavasse bem a goela e criasse as condições óptimas de degustação do repasto.

- Não vais lá almoçar, claro, mas queria que lá estivesses com o Peugeot. Pode ser necessário vir à quinta buscar alguma coisa que falte.

Tudo tratado e (bem) planeado. As cozinheiras cuidavam das panelas e dos tachos, o cheirinho aguçava o apetite, antevia-se o sucesso. Havia canja, coelho, galinha, porco, cabrito, borrego, vitela, feijão branco e verde, ervilhas, batatinhas no forno e fritas, jaquinzinhos, bolinhos de bacalhau, rissóis de camarão e muitos outros pitéus que a memória já limpou. Só o cheiro saciava o apetite.

Os criados, vestidos de um branco imaculado e com o lacinho preto ao pescoço, iam servindo o espumante e repondo os aperitivos nos pratos, até ser dada ordem para os convivas se sentarem nas mesas. Os lugares tinham sido previamente estabelecidos e escolhidos de acordo com regras bem definidas. Casais separados, muito cuidado com alguns "ódios de estimação", de forma a tornar o ambiente descontraído e sem mácula.

- Preciso que vás à quinta levar uma senhora. Está muito mal disposta. A C. vai contigo e tu ajudas a levá-la para um quarto.

Com alguma dificuldade, a senhora foi deitada no banco de trás. Sossegadinha, gemia, soluçava, tossia, vomitava para um saco que a C. segurava. Não foi fácil levá-la até ao quarto e deitá-la na cama, mas lá ficou. Não deu pela viagem e nem fazia ideia onde estava. Baralhações ...

Só pode ter sido dos tremoços. Ou seria dos pinhões? As pevides quase de certeza que não, embora, por vezes, causem alguns embaraços estomacais e intestinais.

Uma coisa é certa: do espumante não foi! Era bruto ... mas de muito boa qualidade. 

quarta-feira, 12 de março de 2025

1884 ou 2025

"(...) Ainda se não disse tudo.

Neste espaço de literatura da decadência, ou decaída de todo, observe a crítica escorreita que há dois projectos: um é patente, o outro é clandestino. O primeiro é - arrasar Inglaterra; e, com efeito, arrasa-se. O projecto clandestino, um tanto arteiro, é obter pelo sofisma tortuoso da letra redonda, tipo Elzevir, o que o merceeiro alcança com o correcto silogismo dos azeites e dos farináceos. O Espiritual ousa correr o pário com o Comestível: a meta é o hábito de Cristo. Que o merceeiro, melindrado na sua prosápia de antropóide, não se agaste, se eu o lanço nestas correrias de hipódromo. Não lhe conheço outros dons que o habilitem a entrar no sport.

Enfim, quando voltares a ministrar os negócios do reino, Tomás Ribeiro, não me percas de olho o meu hábito de Cristo, merecido pela façanha heróica e pouco trivial de arrasar Inglaterra. Bem vês que estas ambições aliás temerárias, confesso, não ultrapassam desmedidamente as balizas do meu merecimento. A almejada venera é a ínfima, penso eu, a mais piranga característica étnica da raça que domina esta nesga rasgada da Espanha (que mo releve dom Jaime) - umas noventa léguas, metade incultas; e, assim mesmo, na povoação dessa metade, inçam e pompeiam, segundo conta o Almanaque Comercial para 1884, cento e vinte e dois condes, trezentos e quatro viscondes, e cento e noventa barões. Quanto a comendadores, quem contou as gotas do Mediterrâneo, as areias do Saara e as estrelas da Via Láctea? (...)"

Vinho do Porto
Camilo Castelo Branco
Frenesi (2001)

terça-feira, 11 de março de 2025

Memórias

O dia permanece na minha memória como se fosse ontem, ou melhor, aparece sempre no "ecran" do  meu "computador", e bem mais nítido do que aquilo que ontem fiz.

Dizem os entendidos que é normal. À medida que os anos vão passando, as gavetas antigas da memória surgem à tona, bem abertas, e escamoteiam as modernices que aconteceram nos últimos tempos. No recente, a gaveta desaparece e nem sequer o móvel se nota.

Já lá vai meio século. Tudo se alterou e os olhos de hoje não servem nem podem "ver" claramente "visto" aquilo que se sentiu nesse tempo. Porém, a gaveta tem este vício de se continuar a mostrar anualmente.

O perigo, nessa época, vinha de cima, duns helicópteros que rosnavam a bom rosnar e voavam quase a rasar os telhados mais altos. Por mais inconsciente que se fosse, havia um buraquinho ao fundo das costas ...

Agora são drones, silenciosos, e bem mais perigosos!

domingo, 9 de março de 2025

Velocidade

Notícias de última hora:

  1. A minha menina faz hoje anos e é uma respeitável senhora, mãe de dois "matulões" que não param de crescer;
  2. O tempo foi multado por excesso de velocidade e, de acordo com fontes bem informadas, vai ser colocado sob controlo apertado, talvez com pulseira electrónica, de forma a prevenir esse seu desaforo.

Veremos se o ponto 2. se concretiza, o que não é crível nestes tempos de fake news.

Entretanto, a Casa exulta com mais um aniversário da mais velha dos dois rebentos que por aqui cresceram e se fizeram grandes.


sexta-feira, 7 de março de 2025

Contas

Por muito que ache que não deve, a minha irmã faz anos, de novo, hoje. Continua a não querer saber quantos nem aceita que outros façam as contas e divulguem o resultado. A matemática, para este efeito, é uma ciência sem importância e à qual não dá qualquer relevância. 
A poesia, sim: permanece sempre actual, seja escrita hoje, ontem ou amanhã. E nunca, mas nunca mesmo, tem necessidade de mencionar os anos que tem.

Perguntas quanto tempo deves rezar?
a papoila na encosta
é vermelha sempre.
 
A poesia em 2013 - Resumo 
José Tolentino de Mendonça 
FNAC (2014)

Podemos desligar o silêncio
que a oficina corrompe
e seguir com a multidão
Ou volver a nós reencontrando
as páginas ardidas
dia a dia
e com o mesmo ritmo colher o sol
como se fosse um fruto
que um estuar só nosso sazonou
Nós os que em breve desistimos
nós que nos reconduzimos
pela nossa mão ao que de nós se espera.

O ritmo do presságio
Sebastião Alba
Edições 70 (1981)

terça-feira, 4 de março de 2025

Carnaval

Está quase no fim a folia! O tempo não ajudou mas vai ser um Carnaval recordado por muitos anos, talvez até para ficar na História e ser objecto de estudo aprofundado pelas gerações vindouras.

Por cá, vivem-se dilemas difíceis de resolver, entre moções de confiança ou de censura, comissões parlamentares de inquérito, vidas privadas e aproveitamentos públicos. O Governo, titubeante, comporta-se como o menino que foi apanhado a fazer malandrices na aula e não sabe o que há-de responder ao professor. Marcelo ainda está a decidir se manda uma carta ao Encarregado de Educação ou prefere o silêncio, que é de ouro e ajuda sempre.

Por lá, bem longe daqui (ou será perto?), o homem da poupa diz, com todas as letras "quem manda sou eu". Trata mal a visita, que teve a lata de não levar fato e gravata, mesmo que fosse curta. Obteve largos aplausos russos, ainda que não se saiba ao certo se foram por ele ter ideias brilhantes ou por ser um enorme idiota.

A Europa assiste, com a senhora Von der Leyen a clamar pela necessidade, imperiosa, de se gastar muito dinheiro em armas e munições e António Costa talvez a dizer, com os seus botões, "onde eu me vim meter. Até pareço o Guterres!".

E, no meio disto tudo, recebi ontem (mais) uma carta da Unicef, a pedir-me nova ajuda para as crianças que, todos os dias, morrem de fome.  

domingo, 2 de março de 2025

Palavras bonitas ...

... para a minha mãe, que partiu há vinte e um anos e por aqui se mantém, diariamente, em recordações, sonhos, arrependimentos, certezas de que estive longe de ter sido um bom filho, lhe dei muitas e grandes preocupações e poucas alegrias.

A HORA DA PARTIDA

A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
As árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.

Poesia
Sophia de Mello Breyner Andreses
Caminho (2005)