quinta-feira, 5 de maio de 2022

Dia Mundial da Língua Portuguesa

Comemora-se hoje o Dia Mundial da Língua Portuguesa, com ou sem Acordo Ortográfico, pouco importa. O importante é que mais de 250 milhões de pessoas se expressam na mesma língua de base e produzem tanta coisa tão diferente e tão rica na diferença.

Poderiam ser milhentos! Ficam apenas alguns pequenos exemplos de como é possível, na mesmíssima língua, escrever de formas tão diversas.

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(...) felizmente que as avencas lhe cobriam a voz
- Obrigado avencas
e o meu pai entretido a desenhar-me um relógio no pulso
- Se não páras quieta não consigo Marina 
uma janelinha para o fim do mês
- Hoje não são dezoito são doze
- Faz de conta que são dezoito pronto
e envelheci uma semana, embora tivesse aferrolhado o ar pedi às avencas que me ajudassem dado que um dos cavalheiros
- Não há cá um gira-discos para as garotas dançarem? (...)
Boa tarde às coisas aí em baixo
António Lobo Antunes
D. Quixote (2003) 
 
(...) O Cabo não se convenceu, levantou uma das pálpebras de Budião, que estavam fechadas, deu-lhe dois tapas no rosto, um pontapé de leve na canela.
- Não se mexe. Há quanto tempo ele está aí? 
- Desde que chegou. Mas tem comido. A corrente do braço é calculada para ele poder segurar o prato e comer, eu mesmo calculei. Ontem comeu feijão com pé de porco, comeu tudo. Hoje foi que ainda não comeu, também ainda é cedo. Hoje eu ...
- Solte ele, desamarre. (...)
Viva o Povo Brasileiro
João Ubaldo Ribeiro
D. Quixote (1998) 
 
 (...) Foi um dia de grandes trabalhos para Lídia. Trouxera uma bata, que vestira, atou e cobriu os cabelos com um lenço, e, arregaçando as mangas, lançou-se à lida com alegria, esquivando-se a brincadeiras de mãos que Ricardo Reis, à passagem, sentia dever usar com ela, erro seu, falta de experiência e de psicologia, que esta mulher não quer agora outro prazer que este de limpar, lavar e varrer, nem o esforço lhe custa, de tão habituada que está, e por isso canta, em voz baixa para que a vizinhança não estranhe a liberdade da mulher a dias, logo à primeira vez que veio trabalhar a casa do senhor doutor. (...)
O Ano da Morte de Ricardo Reis
José Saramago
Caminho (1984)

(...) Simplesmente, Bambo não era um anfíbio qualquer. Embora modesto na escala animal, tinha a sua personalidade. Precatado, discreto, negava-se a cair nos braços do primeiro que lhe desse a salvação.
- Ora viva quem também anda acordado a estas horas!
Não respondeu.
- Na boa da conquista, está-se mesmo a ver! ...
Moita. Nunca dera troco a brincadeiras tolas. De resto, não andava às gatas, como o outro insinuava. Amores, só na primavera e na ribeira de Arcã. (...)
Bichos
Miguel Torga
Coimbra (1940)

(...) Zana me deu a farda do filho; ficou frouxa no meu corpo e provocou risadas. Engoli as risadas; e devolvi a roupa antes de ser engolido pelos olhos de Zana, incapaz de ver a farda em outro corpo. E, graças a Halim, ingressei no Galinheiro dos Vândalos.
No liceu havia vestígios do Caçula: ex-namoradas, histórias de algazarra, de cenas heroicas, duelos, desafios. Nas paredes do banheiro havia inscrições de sua autoria. Por onde passava, deixava um gesto ousado, de valentia, ou um epigrama qualquer, palavras de humor e ironia. Eu cheguei a terminar o curso que ele havia abandonado no último ano. Na verdade, o Caçula não terminou nada, jamais frequentaria uma faculdade, desprezava um diploma universitário, ignorava tudo o que não lhe desse um prazer intenso, fortíssimo, de caçador de aventuras sem fim.
Halim e Zana pensavam que o filho doutor ia corrigi-lo, que cedo ou tarde a vida dura em S. Paulo podia domá-lo. (...)
Dois Irmãos
Milton Hatoum
Companhia das Letras (2017) 
 
(...) As mulheres conseguiram se safar, ou os caíngas não se interessaram por elas. Mas dois jovens foram encurralados e os polícias discutiam com eles, negociando certamente qual a parte dos telemóveis e relógios mudaria de mãos, para pagar a multa informal. Só viu os caíngas meterem coisas nos bolsos e virarem costas. Quando estavam a mais de vinte metros, os jovens espoliados gritaram, vocês é que são os ladrões, vão bardamerda, vamos votar contra vocês, esperem só pra ver, o vosso partido vai ser bassulado, viva a oposição radical, ao que os policiais nem ripostaram, apenas encolhendo os ombros. Entregaram um objecto a cada um dos fiscais municipais. Todos felizes, iriam transformar os produtos roubados em cerveja, sobretudo. Heitor sentiu, devia ter gritado como alguns populares fizeram, deixem lá os moços em paz, estão só a ganhar a vida deles, não estão a roubar nem a matar. Devia, sim, gritar e se indignar, já era altura de terminar essa pouca vergonha de polícias e fiscais corruptos.
O tímido e as mulheres
Pepetela
D. Quixote (2013) 

Quatro anos é um pedaço de tempo muito pequeno. E, olhado de longe, parece relativamente homogéneo. Poderia dizer que foram sempre dias felizes, e de algum modo relativamente iguais.
Mas não estaria a ser exacto. Um dia, no terceiro ano, aconteceu algo diferente. Estava na mezzanine, embrenhado no trabalho, e não me apercebi de nada. 
Só quando desci a escada, horas mais tarde, verifiquei que alguma coisa se alterara: enrolado num pano, em cima da tua saia, havia um gato muito pequeno. (...)
A cidade de Ulisses
Teolinda Gersão
Sextante (2011)

1 comentário:

Anónimo disse...

Excelente selecção.
Parabéns.