segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Apesar de vir com o preço colado ao vidro da mala - «5000 dólares» num laranja florescente -, a carrinha Chevrolet que August trouxera do stand fora a melhor solução para levar as bicicletas. Como eu ia só com a Patience, e a última paragem distava umas sete milhas da praia de West Dennis, seria tudo o que tínhamos quando o comboio chegasse, às seis e dez da manhã. Isso e um par de mochilas com o pouco que faltava na casa de Cape Code. Patience ia mais pesada. Levava o trabalho de casa e Anna não sei-quantas, o seu romance preferido, cuja foto da badana mostrava ter sido escrito por algum pai natal russo.

Depois de nos despedirmos de August, transportámos pela mão as duas bicicletas e despachámo-las no cais de embarque, antes de subirmos para o comboio. Para meados de setembro, cheirava muito a outono, e o céu arroxeara com o aproximar da noite. Dali a Boston, levaria quatro horas, depois havia que esperar pela ligação a Hyannis, de onde pedalaríamos até à casa da praia.

Nos vinte minutos seguintes, chegaram mais passageiros; mesmo assim, quando arrancámos, a carruagem ia a meio. Sentados de frente um para o outro, não dissemos nada até passarmos por Orange, altura em que Patience deixou de olhar para a janela e apontou para as mochilas, no banco mesmo ao meu lado.

- Chegas-me a Karénina?

Isso. Anna nã-sei-das-quantas era, afinal, Karénina, o romance que ela lia, sem nunca parecer fartar-se, a qualquer hora do dia. Se eu passasse por ela, parava para a observar. Via-a quando o pousava e fixava a vista num ponto do universo que eu nunca soube encontrar. Mesmo sem olhar para as páginas, Patience não o largava, capaz de o ler de memória, ou lembrando aquelas pausas que fazia no alpendre a seguir a um gole de whisky, desta vez sem a desculpa de ter o mar pela frente.

- Não leias agora - pedi, enquanto lho estendia. - Tenta dormir.

Sem esperar que me respondesse, ajeitei as mochilas para fazerem de almofada e fui eu que adormeci. (...)"

Mãe, doce mar
João Pinto Coelho
D. Quixote (2022)

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