quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) As histórias da minha avó, que eu adorava ouvir, e ela me contava ao jantar e ao fim de semana, atraíam-me e estabeleciam entre nós um elo mágico. Ela revelava-me um mundo antigo, cheio de interditos e mistérios. De uma beleza escura, enigmática, que excitava a minha imaginação. Havia grandeza nas suas descrições da vida de outros tempos. As mãos rachadas pelo frio. O trabalho na mercearia do pai: a forma como pegava na barra de manteiga e cortava uma fatia de 50 gramas a pedido do freguês, porque a manteiga era um luxo para quem vivia com o dinheiro escrupulosamente contado. Descrevia-me o sabor do açúcar mascavado, a caligrafia perfeita do meu avô, anotando no livro de contas o que levavam fiado. Havia beleza no rigor. Contou-me que o seu nome, Josefa, surgiu porque a sua mãe tinha tido uma gestação de barriga bicuda, sinal de varão, e portanto decidiu-se que ficaria com o nome do pai, José, e bordou-se o enxoval com a inicial J em maiúsculo. O nome de uma rapariga não tinha importância, por isso simplificaram, feminizando o nome: Josefa. Com o desgosto, o pai recusou pegar-lhe ao colo e evitou olhá-la nos primeiros meses. Depois, foi-se fazendo à ideia. Não havia solução. A minha avó era uma criança bonita, com olhos azuis cheios de luz, e o pai quebrou. <<Uma linda criança. Uma menina abençoada.>>

Deus não deu mais filhos ao meu bisavô, porque o Senhor tem os seus desígnios. Decidiu que a menina iria estudar, para não acabar a vender, como ele, feijão-frade ou grão, bacalhau seco, toucinho fumado e banha de porco. Tudo a peso. A minha avó contava que tinha sido uma das poucas raparigas da vila a completar o liceu.(...)"

Um cão no meio do caminho
Isabela Figueiredo
Caminho (2022)

1 comentário:

Anónimo disse...

👍