quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Bilhete de Identidade

- Levas vinte escudos, que chega e sobra. O homem vai dizer que não tem troco e tu respondes que vais trocar à loja.

Dito e feito. Era a primeira vez que, sozinho, ia tratar da renovação do bilhete de identidade. O homem tinha os cabelos todos brancos, estava atrás de um grande balcão de madeira castanha, vestia um fato cinzento e usava umas mangas pretas por cima das do casaco. Não havia mais ninguém na sala.

- Bom dia. Venho renovar o meu bilhete de identidade, disse eu, estendendo o antigo, que iria caducar em breve.

Pegou no bilhete, mirou, remirou e, do alto da sua arrogância, despejou:

- Espera.

Se a timidez e o receio já eram grandes, o medo da ordem provinda de tal figura acentuou-se. Metia respeito ao falar, gritava, como se fosse polícia e tivesse à sua frente um criminoso. Era o "dono" da loja.

- Chega cá!

Tinha saído de trás do balcão e aproximou-se da craveira onde, percebi, me iria medir a altura. Eu já era grande, pensava, mas não sabia ao certo quanto media.

- Encosta bem as costas.

A peça de madeira que iria assinalar a altura na fita marcada, foi solta e caiu sobre a cabeça, dura, do miúdo que eu era. Não doeu muito, mas não foi meiga. Anotou no papel que trazia, usando um lápis que tinha nascido nos dias pequenos ou já tinha sofrido muitas aparadelas. Não fez comentários nem me disse a altura.

- As fotografias?

- Estão aqui,  senhor Garcias.

De novo atrás do balcão, coloca uma enorme caixa em cima, abre a tampa, retira o rolo e mancha a pedra de tinta bem preta. Pega no meu indicador direito sem dizer palavra, tinge-o de preto e, a seguir, fixa a imagem em dois papéis distintos. Um era o impresso que, depois de preenchido e plastificado em Lisboa, haveria de ser o meu novo bilhete de identidade, o outro deveria ser destinado a arquivo, para o que desse e viesse. 

Preencheu o papel que substituiria o velho bilhete, já guardado, e que iria servir para efectuar o levantamento do novo daí a 15 dias ou um mês. Estava concluído o trabalho, só faltava pagar. E tinha demorado pouco mais de meia hora. Maravilha!

- São dezassete e quinhentos.

Estendi a nota de vinte Santo António, que o meu pai me tinha dado. Recolheu a nota, simulou olhar para a gaveta e

- Não tenho troco.

- Eu vou ali fora, à loja, e troco.

O olhar fulminante acompanhou o devolver da nota, atirada com violência.

Fui à tasca do Tição e pedi, por favor, para me trocarem a nota, para pagar no Registo Civil.

- O homem não tem troco, não é? É o costume. Ele queria era ficar com o troco. Foste esperto.

Não fui nada. O aviso do meu pai foi precioso e determinante.

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