quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Livros (lidos ou em vias disso)

A "empreitada" da "biblioteca itinerante" do meu amigo ADS está quase concluída, arrumados que estão no saco alguns calhamaços, de entre eles o "A leste do Paraíso" com as suas 743 páginas belíssimas. Dos onze que a "carrinha" deixou restam apenas dois, ambos de Vergílio Ferreira: "Apelo da noite" e "Mudança". Ficarão em cima da secretária por alguns dias, esperando vaga, que o tempo de ler dois ou mais livros ao mesmo tempo já lá vai há muito. Agora, um de cada vez e com calma, que os olhos estão já bem longe de ser os mesmos e o "computador" já não tem memória suficiente.

Para intervalar, segue-se um exemplar da biblioteca da casa, entrado recentemente em edição nova, de um original mais antigo do que eu - 1948. É o regresso, sempre agradável, a Aquilino, com "Uma luz ao longe" e a necessidade permanente de ter o dicionário sempre por perto.

O livro tem um belíssimo prefácio de Gonçalo M. Tavares e começa assim:

"Ao descoser do povo, o Sr. Saraiva deitou olhos amorosos para a tapadinha de regadio e bouça, e carpiu-se. A garotada não deixava coalhar dois pinhões naqueles seus pinheiros mansos. O pior é que, a botar abaixo as pinhas, faziam o calcadoiro de cem potros no picadeiro. Num raio de muitos metros não se salvava uma espiga. A sua vontade era empalar ali um malandro - e de olhos muito fitos no Loio, a exemplificar, levava a mão à bunda, em seguida à boca - como se faz aos gaios nos campos de milho.
O natural do prefeito era macambúzio e não tardou que mergulhasse no pélago limoso de suas cogitações, trupe-trupe, escarrapachado na burrica. Quando tornei a olhar para ele, ia esbagoando o rosário e bichanava, tocando os seus lábios do deslize imperceptível dos padres-nossos.

Dali em fora, sempre a subir, via-se uma aguilhada de semeadura por dez de fragoedo e baldio. As messes começavam a apendoar, para não desmentirem o ditado: Em Março bota o centeio o plumaço; Em Abril o penduril; com Junho, foicinha em punho. Mais bonito que a folha, mostrava-se ainda o maninho, picado das primeiras lantejoilas dos tojos e com as giestas a derreterem-se em maias argênteas e amarelas, e era pena que não as houvesse vermelhas. Mas pela terra alastrava o verde, o verde dos esplêndidos matizes, entre diáfano nos bosques e encarniçado no mato galego, e polifonicamente luxurioso. E, onde as águas não cantavam, sussurravam, levadas numa ladainha de brancura, de socalco para socalco.(...)

Uma luz ao longe
Aquilino Ribeiro
Bertrand Editora (2020)

1 comentário:

Anónimo disse...

(…) De alto, em cima da égua, os meus olhos divagavam, reflectindo a contenção interior e sensíveis a tudo o que viam. Não há como o chouto de um cavalo para embalar corpo e alma. As ilusões e os sonhos soltam-se e voejam como abelhas, quando acerta o sol nos cortiços. (…)

Uma luz ao longe
Aquilino Ribeiro
Bertrand Editora (Setº 2020)