"(...) - Um ninho! - gritou alguém.
E Guiomar, que passava, voltou-se.
- Onde está? - perguntou, alarmada.
- Aqui, menina ... Quer ver? Olhe que lindo!
Dois braços roliços de moçoila afastaram as vides ramalhudas e mostraram num torcegão da cepa, seguro entre duas varas, o manhuço de raízes, gravetos e terra.
- É de melro. Que lindeza!
O Chico pôs a cesta no chão, e largou desenfreado pela valeira fora.
- Onde vais? - berrou o Gustavo, que estava à espera que lhe enchesse o vindimeiro.
- Ia ver ... - disse o rapaz, estacado.
Guiomar tinha-se aproximado curiosa, e o Gustavo deu licença ao petiz para colaborar no interesse da patroa.
- Anda lá, então.
A espreitar por entre as duas, o pequeno confirmou:
- É de melro, é ... Mas já voaram, bô!...
Na sua voz havia ao mesmo tempo pena e contentamento.
- Tem um ovo ... - notou timidamente Guiomar.
- Não saiu ... Se calhar o pássaro enjeitou ...
Os braços da montanhesa, vivos de sangue, continuavam a afastar a rama. Pálida, Guiomar fixava o ninho onde o ovo pintalgado jazia. O Chico perdera todo o entusiasmo.
- Costumam ficar muitos assim? - quis saber ela.
- É conforme ...
- Tão bem forradinho que ele está! ... - elogiava a vindimadeira.
- É com penas ... - esclareceu o rapaz.-Tem de ser. É o lençol que a mãe põe na cama dos filhos ... nascem nuzinhos em pêlo ...
Um gelo mortal cobria o coração desiludido de Guiomar. (...)"
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra (1997)
1 comentário:
Parabéns pela escolha do texto.
Li recentemente este excelente livro que vivamente aconselho/sugiro. As rogas de trabalhadores contratados, as condições em que labutavam, o medo de se queixarem perdendo o sustento, as diferenças sociais, tudo apresentado de um modo muito contagiante que nos prende a uma leitura sem descanso.
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