sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...)     - Um ninho! - gritou alguém.

E Guiomar, que passava, voltou-se.

- Onde está? - perguntou, alarmada.

- Aqui, menina ... Quer ver? Olhe que lindo!

Dois braços roliços de moçoila afastaram as vides ramalhudas e mostraram num torcegão da cepa, seguro entre duas varas, o manhuço de raízes, gravetos e terra.

- É de melro. Que lindeza!

O Chico pôs a cesta no chão, e largou desenfreado pela valeira fora.

- Onde vais? - berrou o Gustavo, que estava à espera que lhe enchesse o vindimeiro.

- Ia ver ... - disse o rapaz, estacado.

Guiomar tinha-se aproximado curiosa, e o Gustavo deu licença ao petiz para colaborar no interesse da patroa.

- Anda lá, então.

A espreitar por entre as duas, o pequeno confirmou:

- É de melro, é ... Mas já voaram, bô!...

Na sua voz havia ao mesmo tempo pena e contentamento.

- Tem um ovo ... - notou timidamente Guiomar.

- Não saiu ... Se calhar o pássaro enjeitou ...

Os braços da montanhesa, vivos de sangue, continuavam a afastar a rama. Pálida, Guiomar fixava o ninho onde o ovo pintalgado jazia. O Chico perdera todo o entusiasmo.

- Costumam ficar muitos assim? - quis saber ela.

- É conforme ...

- Tão bem forradinho que ele está! ... - elogiava a vindimadeira.

- É com penas ... - esclareceu o rapaz.-Tem de ser. É o lençol que a mãe põe na cama dos filhos ... nascem nuzinhos em pêlo ...

Um gelo mortal cobria o coração desiludido de Guiomar. (...)"

Vindima
Miguel Torga
Gráfica de Coimbra (1997)

1 comentário:

Ads disse...

Parabéns pela escolha do texto.
Li recentemente este excelente livro que vivamente aconselho/sugiro. As rogas de trabalhadores contratados, as condições em que labutavam, o medo de se queixarem perdendo o sustento, as diferenças sociais, tudo apresentado de um modo muito contagiante que nos prende a uma leitura sem descanso.
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