domingo, 27 de setembro de 2020

O papagaio

A rua era larga e os passeios também. Não havia muitos carros mas os transeuntes deslocavam-se por ali em número significativo, eles a caminho dos empregos, elas das lojas ou das casas onde faziam limpezas, os mais novos, saltitando ou correndo, com a saca dos livros na mão ou ao ombro.

A taberna situava-se quase no fim da rua, ou no princípio, consoante a direcção do caminhante. Tinha duas meias portas, de madeira pintada de verde, que abriam para dentro e deixavam dois espaços, um em baixo e outro em cima, como se via nos filmes de cowboys. Por detrás delas, existia a verdadeira porta que, à noite, assegurava a segurança da casa. 

Na parede existia uma armação de estrutura tubular, com três níveis, em sentidos, alturas e tamanhos  diferentes. Dois círculos de tubo fino, soldados ao varão principal completavam o poleiro e neles eram colocados dois recipientes em louça, um com água e o outro com sementes variadas. O taberneiro trazia o papagaio logo de manhã, quando abria a tasca, e por ali o deixava todo o santo dia, preso à estrutura com uma corrente com comprimento suficiente para lhe permitir algumas acrobacias.

"Falava" muito, o papagaio.

- Olá, bom dia.

- Vai um copito?

- Viv'ó Benfica.

- Chiça, já chove. 

Estas e outras expressões eram repetidas pelo papagaio ao longo do dia, sem destino específico, no intervalo dos saltos ou quando se colocava suspenso, de cabeça para baixo, seguro apenas pela corrente presa à pata.

Quando o homem se aproximava, o comportamento da ave alterava-se.

- Onde é que vais, ó careca? Onde é que vais, ó careca? Onde é que vais, ó careca?

E repetia sempre, até que o homem virava a esquina e desaparecia, e tudo voltava ao normal. Toda a gente sorria ao ouvir o papagaio, mas o sofrimento do homem com a situação era visível. 

Um dia, farto de ouvir a pergunta e de ver os sorrisos, maliciosos, dos outros, tomou uma decisão pensada, drástica e decisiva: mudou de passeio e passou a circular sempre pelo lado contrário à tasca.

Nunca mais ouviu "onde é que vais, ó careca", mas o cabelo não cresceu. 

Sem comentários: