quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Holocausto

Ao ler os jornais, deparei-me com a notícia de que hoje se comemora o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. Há 76 anos as tropas aliadas libertaram os que sobreviveram à tragédia vergonhosa, levada a cabo pelos nazis em muitos sítios e sublimada em Auschwitz-Birkenau. Pese embora pensar que as Vítimas do Holocausto devem ser lembradas todos os dias, para que o horror do que aconteceu não caia no esquecimento e não deixe margem para uns quantos que o pretendem limpar da História.

Lembrei-me de um dos vários livros que já li sobre a tragédia e, talvez, o que mais me impressionou. Abri ao "calhas" e surgiu isto:

(...)A Carmen voltou. Depois de se terem certificado de que o campo estava livre, ela e a Viva agarraram-me cada uma por um braço e levaram-me para um canto formado por um lanço de parede e o monte dos arbustos que tínhamos de transportar. "Aqui está!" disse a Carmen, a mostrar-me o balde de água. Era um balde de zinco, dos usados no campo para tirar água de um poço. Um balde grande. Estava cheio. Soltei-me da Carmen e da Viva e atirei-me ao balde de água. Atirei-me, literalmente. Ajoelhei-me junto ao balde e bebi como um cavalo bebe, com o nariz dentro de água, com a cara toda dentro da água. Não sei dizer se a água estava fria - devia estar, acabada de tirar e era no começo de Março - e não sentia nem o frio nem o molhado na cara. Bebia, bebia até ficar sem fôlego e era obrigada a tirar as narinas da água de vez em quando para apanhar ar. Mas sem parar de beber. Bebia sem pensar em nada, sem pensar no risco de ter de parar, de levar pancada, se uma kapo aparecesse. Bebia. A Carmen, que estava de guarda, disse: "Agora chega." Tinha bebido metade do balde. Fiz uma pequena pausa, sem largar o balde que tinha entre os braços. "Anda, disse a Carmen, já chega." Sem responder - podia ter feito um gesto, um movimento -, sem me mexer, voltei a mergulhar a cabeça no balde. Bebi e bebi. Como um cavalo, não como um cão. Um cão lambe, com uma língua ágil. Dobra a língua como uma colher para transportar o líquido. Um cavalo bebe. A água diminuía. Inclinei o balde para beber o fundo. Quase deitada no chão, sorvi até à última gota, sem entornar uma única. Ainda queria ter lambido a borda do balde. A minha língua estava rígida de mais. Também rígida de mais para lamber os lábios. Enxuguei a cara com a mão e enxuguei a mão nos lábios. "Agora tens mesmo de vir", disse a Carmen, "o polaco está a reclamar pelo balde" e fazia sinais para alguém atrás. Não queria largar o meu balde. Não me podia mexer de tão pesada que tinha a barriga. Era como uma coisa independente, um peso ou um embrulho que me tivessem pendurado no esqueleto. Estava muito magra. Há muitos e muitos dias que não comia o pão porque não conseguia engolir nada sem saliva na boca, há dias e dias que não comia a sopa, mesmo quando estava bastante líquida, porque a sopa era salgada e parecia fogo nas aftas que tinha a sangrar na boca.(...)

Auschwitz e depois
Charlotte Delbo
BCF Editores

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