quarta-feira, 7 de julho de 2021

Juventude

Eram cerca de duzentos. Jovens na idade em que se sabe tudo, se aguenta tudo e se quer fazer tudo. Pertenciam à mesma companhia de instrução e cumpriam a recruta do serviço militar obrigatório, "missão" conhecida por todos e adorada por muito poucos.

A guerra colonial era a realidade agitada de forma diária, com a mais que provável mobilização para a Guiné sempre presente. Isso e uma disciplina férrea eram a motivação mais do que suficiente para que todos se aplicassem o melhor que conseguiam nas provas teóricas e nas físicas. A ida à guerra era determinada pela classificação final e por algumas "cunhas", naturalmente.

A "educação física" era particularmente exigente e dura, mesmo para quem tinha pouco mais de 20 anos. A espingarda G-3 era mais um membro do corpo, que acompanhava, e estorvava, todos os movimentos. Não havia lugar a queixas e a solidariedade entre todos fazia-se sentir. Ninguém ficava para trás e qualquer desfalecimento era, de imediato, resolvido com a ajuda necessária, libertando a carga, da espingarda à mochila e, se não bastasse, oferecendo o ombro para apoio. O campo de obstáculos, situado lá bem ao fundo do quartel, era o local preferido pelo comandante da companhia para, muitas vezes amesquinhando um ou outro, tentar fortalecer o grupo, levá-lo cada vez mais longe e torná-lo cada vez mais forte.

Já se perdeu na memória o nome próprio. Recordo o apelido - Preto - e que era da zona de Mirandela. Não ia a casa de fim-de-semana por não ter carro próprio e os transportes públicos, pelas "auto-estradas" de então, demorarem uma "eternidade". Desmaiava ao ver sangue, como todos pudemos confirmar aquando do "teste do dedo". Depois da picadela e assim que apertou para que o enfermeiro pudesse recolhê-lo para a lamela, caiu do banco e pregou um susto ao oficial médico que, lá ao longe, apreciava o decorrer dos trabalhos. Para agravar, sofria de vertigens e, de acordo com o que dizia, qualquer altura lhe dava pânico. Era sempre dispensado, pelo alferes do pelotão, da subida (e corrida) ao pórtico. 

Um dia, o comandante da companhia apercebeu-se e chamou-o, questionando a razão da dispensa.

- Não consigo, meu tenente. Sempre fui assim ...

- És um maricas. Todos os camaradas sobem, e correm, e tu ficas aí ... Não tens vergonha?

A admoestação e o achincalhamento começaram. Era visível o nervoso e o desejo de, se pudesse, fugir dali. O comandante continuava a arenga, tornando-o um farrapo perante os outros. Não satisfeito com a conversa, cheia de palavrões e impropérios, colocou-lhe um tijolo à frente e mandou-o subir. Claro que os nervos o tolheram e nem isso conseguiu fazer. 

Começou a ouvir-se um sussurro, baixinho. Tornou-se mais audível. Não tardou muito e era um escarcéu. 

- Acabe com isso! Nós fazemos por ele ...

O comandante calou-se e mandou-o juntar-se a nós. O resto do dia foi violento. A solidariedade e a "rebelião", como sempre, pagaram-se com "língua de palmo".

Nunca mais o vi, porque os destinos seguintes não se cruzaram. Alguns meses depois, num encontro fortuito com outro camarada de recruta, soube que tinha sido mobilizado para a Guiné ...

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