quarta-feira, 21 de julho de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

(...) Numa vila sertaneja e tradicionalista como Trigais, por meados do século XX, não eram de esperar comportamentos de modernidade no interior das famílias, como por exemplo essa coisa de os filhos tratarem os pais por tu. Nada de americanices. Os pais são para ser tratados com respeito.

A família de Feliciano era uma família típica do meio. Ou seja, constituída por um pai que chefiava, ralhava, marcava rumos e garantia o sustento da família; uma mãe que se encarregava das tarefas domésticas, nas quais estava incluída a educação dos filhos; um filho e uma filha que reverenciavam e obedeciam aos pais.

Delfim Carvalhais, o pai, timoneiro da barca, passava o melhor do dia na loja a aviar a clientela, a pesar quilos de arroz na balança marca A. Pessoa, a partir o bacalhau às postas numa guilhotina própria para isso, a conferir a contabilidade rudimentar, a encomendar aos fabricantes produtos em falta, a aturar caixeiros-viajantes tagarelas, e às vezes, quando a freguesia rareava e o ócio se instalava, a dormitar ou a cismar na morte da bezerra, sentado do lado de dentro do balcão, com um rádio de pilhas roufenho, permanentemente sintonizado na Emissora Nacional, a despejar música e propaganda assolapada do regime. Se era Inverno, punha os pés sobre o estrado da braseira. Umas vezes por outras, ao cair da tarde, depois de fechadas as repartições públicas, apareciam três ou quatro compinchas desocupados e armava-se nas traseiras da loja uma mesa clandestina de abafa ou sete-e-meio, interrompido para Delfim atender algum freguês que entrasse. 

Nas férias escolares, Delfim gostava de levar o filho para a loja, esperançado em, dessa forma, despertar nele o gosto pelo comércio, porque seria o comércio, se outras oportunidades não surgissem, que lhe asseguraria um futuro desafogado. Quando o filho era já mais crescidinho, começou a encarregá-lo de tarefas proporcionadas à sua idade, força e entendimento, e no fim recompensava-o com meia dúzia de rebuçados peitorais.

A filha não, não a levava para a loja. Delfim tinha ideias muito arreigadas sobre o que pode e não pode fazer uma rapariga, o que parece bem e o que parece mal, e os perigos a que se expunha toda a mulher que não se guiasse por estes sábios preceitos. E tratava de separar devidamente as águas, isto é, as ocupações dos filhos. Por isso, Carlota ficava com a mãe em casa e instruía-se nas tarefas domésticas, ajudando a passar a ferro ou a cerzir alguma peça de roupa a precisar de conserto. E assim ia adquirindo as competências que devem exornar uma boa dona de casa. (...)

Feliciano
A.M.Pires Cabral
Tinta da China (MMXXI)

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