segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Consulta

O Carlinhos teve, desde criança, o Manelinho como o seu melhor e dedicado amigo. Cresceram na mesma rua, brincaram juntos às escondidas, jogaram à bola e ao berlinde, subiram as mesmas árvores, espreitaram os mesmos ninhos, frequentaram a mesma turma na primária e tiveram igual sorte no liceu.

No final do sétimo ano, fizeram as suas escolhas e, enquanto o Carlinhos optou pela Medicina, no Porto, o Manelinho preferiu a Veterinária, em Lisboa. A amizade permaneceu intocável, ainda que os encontros fossem rareando e se limitassem a alguns fins de semana e às férias. À medida que os estudos evoluíam, as discussões aumentavam e nunca havia acordo.

- Eu estudo para salvar vidas humanas, tarefa dificílima mas de uma nobreza enorme, argumentava o Carlinhos.

- Sem comparação com a minha. Os animais não se queixam. É preciso entender, estudar, analisar, perceber o que se passa, sem ouvir sequer uma palavra, devolvia o Manelinho.

As diferenças e a valia de um ou do outro curso mantiveram-se durante os anos de formatura e prosseguiram quando ambos iniciaram as respectivas actividades profissionais. Discutiam a utilidade e a dificuldade sem nunca chegarem a acordo, preservando sempre a amizade como bem acima de qualquer discordância.

Um dia (há sempre um dia), Manelinho sentiu-se mal, com dores no corpo, náuseas, cansaço, suores frios, dificuldades na respiração. Resolveu telefonar ao amigo.

- Preciso de uma consulta, com urgência.

- Dentro de 10 minutos, no meu consultório. 

Ainda não tinham passado os 10 minutos e o Carlinhos já tinha a bata vestida, o estetoscópio ao pescoço,  o medidor da tensão arterial a postos e o Manelinho sentado à sua frente.

- Conta lá o que se passa.

- Não, isso não. Não te vou dizer nada. Examina, analisa, faz o que quiseres, mas vais descobrir por ti, sem uma palavra minha. É assim que eu faço com os meus doentes, que não sabem falar.

Carlinhos não se fez rogado. Auscultou, examinou, apalpou, mediu, espreitou, numa consulta longa, dedicada e atenta. No fim, pesaroso, decidiu:

- Nada a fazer. Abate-se! 

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