(...) Não falou do gatinho nem de qualquer outro tema. Nem se lembrou da mica, nem do artigo. Não era ninguém. Não encontrava palavras e ele parecia feliz por não ter de conversar. Quando acabou, Nino recostou-se na cadeira, oferecendo o peito pressentido na camiseta justa ao olhar de quem estivesse. O pescoço é que era mais curto. Depois agradeceu com os floreados habituais o guisado perfeito, nunca provara nada melhor. E lançou-se numa peroração pós-prandial, que dizia mais ou menos isto:
- Um fantasma não tem de ser necessariamente irreal. Pode ser tão real como tu ou eu. Eles têm é diversos graus de realidade, de densidade, cara Anna, e eu diria que, em média, o seu grau de realidade depende sobretudo da densidade que cada um de nós consegue atribuir-lhe. Há quem consiga criar fantasmas do nada, mas o melhor, penso eu, é ter uma base, uma espécie de primário, como na pintura. Se houver um primário, uma cor unida, que nos empape a tela, a partir daí é mais fácil criar uma imagem. Ela é segura, é duradoura. Há quem considere que ver fantasmas é sinal de loucura. Mas na verdade todos somos fantasmas uns dos outros.
Anna calou-se, percebeu que tinha ali pano para mangas, no fundo pareceu-lhe banal o que ele dizia, no que precisou de sofisticação para aceitar ideias muito batidas pelo tempo - apenas porque vinham dele. De tudo o que dissera, ela escolheu sentir-se como alvo de uma crítica à sua devoção. Nino subtraía-se, mais uma vez, ao sentimento falso que nela imaginava com tanto empenho uma verdade qualquer, uma <<relação>>. Do ponto de vista estritamente filosófico, a teoria do fantasma não era convencional.(...)
Luísa Costa Gomes
D.Quixote (2021)
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