terça-feira, 3 de agosto de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

(...) Não falou do gatinho nem de qualquer outro tema. Nem se lembrou da mica, nem do artigo. Não era ninguém. Não encontrava palavras e ele parecia feliz por não ter de conversar. Quando acabou, Nino recostou-se na cadeira, oferecendo o peito pressentido na camiseta justa ao olhar de quem estivesse. O pescoço é que era mais curto. Depois agradeceu com os floreados habituais o guisado perfeito, nunca provara nada melhor. E lançou-se numa peroração pós-prandial, que dizia mais ou menos isto:

- Um fantasma não tem de ser necessariamente irreal. Pode ser tão real como tu ou eu. Eles têm é diversos graus de realidade, de densidade, cara Anna, e eu diria que, em média, o seu grau de realidade depende sobretudo da densidade que cada um de nós consegue atribuir-lhe. Há quem consiga criar fantasmas do nada, mas o melhor, penso eu, é ter uma base, uma espécie de primário, como na pintura. Se houver um primário, uma cor unida, que nos empape a tela, a partir daí é mais fácil criar uma imagem. Ela é segura, é duradoura. Há quem considere que ver fantasmas é sinal de loucura. Mas na verdade todos somos fantasmas uns dos outros.

Anna calou-se, percebeu que tinha ali pano para mangas, no fundo pareceu-lhe banal o que ele dizia, no que precisou de sofisticação para aceitar ideias muito batidas pelo tempo - apenas porque vinham dele. De tudo o que dissera, ela escolheu sentir-se como alvo de uma crítica à sua devoção. Nino subtraía-se, mais uma vez, ao sentimento falso que nela imaginava com tanto empenho uma verdade qualquer, uma <<relação>>. Do ponto de vista estritamente filosófico, a teoria do fantasma não era convencional.(...)

Afastar-se
Luísa Costa Gomes
D.Quixote (2021)

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