terça-feira, 9 de novembro de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

Não me canso de dizer, por aqui e em todo o lado, que adoro a forma como António Lobo Antunes escreve, que o considero o melhor escritor português vivo e um dos maiores de sempre.

Faltando livro novo, julgo, a editora D. Quixote publicou um novo livro onde reúne 164 crónicas já publicadas nos cinco volumes anteriores às mesmas dedicados e 9 inéditas. O livro tem prefácio do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa.

Muito embora a minha preferência vá para os romances, as crónicas são, também, excelentes. Dispõem bem, são escritas com um gosto e uma leveza "do outro mundo", lêem-se de uma penada e versam sempre temas que mexem connosco. Para além disto tudo, são escritas de forma sublime.

Recordações da casa amarela

(...) A Mãe da Senhora, a quem também jamais escutei um som

(não desesperem que os barulhos vêm a seguir)
 
levava o ano lectivo a fazer crochet num banquinho de lona sob a macieira, e a sua função consistia em deixar-me sonhar que se morresse não havia escola durante uma semana. Enquanto lá andei infelizmente nunca morreu, apesar de uma bronquitezinha cujos progressos eu acompanhava com desvelo e esperança, e aposto que continua a fazer crochet em qualquer escola de arrabalde e a sofrer de uma bronquite que não se decide para desespero dos alunos. A Senhora, filha desta perversa tartaruga centenária, casada com o Senhor André, tinha bexigas

(uma desgraça nunca vem só)
 
ensinava a primeira e a segunda classes e não me ligava peva: só por isso, na minha opinião, merecia o marido e as borbulhas. O Senhor André ocupava-se da terceira e da quarta, era careca, sovava-nos com abundância e método ao estalo, à reguada, a pontapé, e enfiava-nos a tabefe pela cabeça adentro as serras do sistema Galaico-Duriense, o ramal da Beira Baixa e os rios de Moçambique. Exemplo: Peneda (estalo), Soajo (estalo), Larouco (estalo), Gerês (estalo), e assim sucessivamente

(assim sucessivamente era uma das suas expressões favoritas)

como quem crava pregos na parede à martelada.

As aulas deste pedagogo iniciavam-se de acordo com um ritual imutável: o Senhor André chegava, nós levantávamo-nos, o Senhor André sentava-se, nós sentávamo-nos, o Senhor André tirava pêlos do nariz, nós não

(o Senhor André era a criatura com mais pêlo no nariz que imaginar se pode, e eu supunha que em lugar de miolos possuía no interior do crânio um piaçaba que não parava de crescer)

e após a sua colheita de cerdas que ele lançava com desprezo para o chão esfregando o indicador no polegar, ordenava ao Nicolau

(o Nicolau era ruivo: existe sempre um ruivo em cada turma)
 
procurando trocos na algibeira Ó Nicolau vai-me comprar um maço de Três Vintes. O Nicolau partia a trote livre de recitar as ilhas dos Açores, um frémito de ciúmes do Nicolau percorria a turma que amansava os ditos ciúmes dando caneladas no Nicolau durante a hora de almoço, e enquanto esperava que o dito Nicolau lhe trouxesse o cancro o Senhor André chamava o Vasconcelos ao quadro e aplicava-lhe uma bofetada mesmo antes de começar a lição, porque conforme nos explicava com a sua subtil frontalidade era a melhor forma de poupar tempo dado que o Vasconcelos não estudava. Na realidade nunca se soube se o Vasconcelos estudava ou não estudava porque o Vasconcelos nem conseguia abrir a boca: mal chegava ao raio de acção do Senhor André já estava a bater com a testa no quadro. O quadro caía, o Vasconcelos leva um biqueiro suplementar por ter derrubado a ardósia, a seguir ao Vasconcelos era a vez do Norberto, (...) 

As crónicas
António Lobo Antunes
D. Quixote (2021) 

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