sábado, 13 de novembro de 2021

Condução

Era sempre ela quem conduzia a carroça que o burro puxava, ligeiro na ida, cansado no regresso, quando as abóboras ou as batatas pesavam no lastro da viatura. Em outras vezes, a carroça ficava em casa e o burro era aparelhado com os dois cestos bem presos à albarda. A condutora, essa, nunca mudava. Em vez do banco e da mão direita descansando na bola do travão da carroça, aí vinha ela sempre sentada de lado, com as duas mãos segurando a arreata. Escarranchar na albarda era pose exclusiva de homem e só possível sem cestos. O burro era o transporte individual utilizado para as deslocações que não envolviam grandes cargas, fazendo o papel do actual automóvel citadino, com os cestos a servirem de porta-bagagens.

A motorista era exímia na condução, quer do burro enquanto "motor" da carroça, quer no asinino isolado, apesar de não ter carta de condução. Tinha uma licença para a carroça, confirmada com a chapinha esmaltada a branco e letras pretas, identificando o número de registo e a edilidade a que pertencia, afixada na parte de trás do veículo. O saber da experiência feito, alicerçado na transmissão cultural dos mais velhos, era a sua escola. Sem nunca ter passado por aulas de código da estrada, sabia bem como conduzir na sua mão, sem excesso de velocidade e sem violação das regras de trânsito que, à época, estava bem longe de ser caótico. Raramente andava a pé e o burro era o seu grande companheiro nas deslocações diárias para a fazenda, o mercado, o que fosse necessário. 

O marido, pelo contrário, era um pedestre empedernido. Com a enxada às costas, começava bem cedo a caminhada, primeiro até à tasca para o bagacinho da manhã, depois até à fazenda para tratar de garantir o sustento da casa. Ao fim do dia, o regresso tinha nova paragem na tasca, para o tintinho que abria o apetite para a janta. Era um homem comedido, de poucas palavras e muito trabalho, que não perdia tempo em conversas sem finalidade. Sempre que alguém lhe falava na extraordinária capacidade da mulher, os olhos riam-se e a boca exprimia com satisfação:

- Uma máquina! É pró burro e prá carroça!

Sem comentários: