terça-feira, 16 de novembro de 2021

Aniversário de Saramago

Se fosse vivo, José Saramago completaria hoje 99 anos. 

A sua Fundação iniciou hoje as comemorações do Centenário do nascimento do Prémio Nobel da Literatura de 1998, que se prolongarão até Novembro de 2022. 

Resolvi também comemorar e fui à estante. Peguei na Viagem a Portugal, edição de 1997, autografado pelo autor em 24.10.1998, e reli parte do que Saramago escreveu, com o brilhantismo que se lhe reconhece, sobre as Caldas da Rainha. Algumas observações bem pertinentes e até a referência ao "dono" da minha rua (Costa Mota), entre outros ceramistas de renome, lá se encontram.

"(...) De manhã, nas Caldas, vai-se ao mercado. O viajante foi, mas não fez compras. O mercado das Caldas é para avios domésticos, não tem mais pitoresco do que isso. Em grande engano caem os turistas que indo de passagem vêem o magote de vendedores e compradores, tão ao natural, e irrompem excitadíssimos, enristando máquinas fotográficas, à procura do ângulo raro e do raro espécime que lhe enriquecerá a colecção. Em geral, o turista fica frustrado. Para ver comprar e vender não precisava de vir tão longe.

Onde se está bem é no jardim. Ao mesmo tempo íntimo e desafogado, o jardim das Caldas da Rainha é, para usar o nariz-de-cera, um lugar aprazível. O viajante senta-se por aqueles bancos, divaga ao longo das áleas, vai vendo as estátuas, naturalistas por via de regra, mas algumas de boa factura, e depois entra no museu. Abunda a pintura, embora nem toda se salve: o Columbano, o Silva Porto, o Marques de Oliveira, por quem o viajante torna a confessar rendida estima, o Abel Manta, o António Soares, o Dórdio Gomes, e alguns outros. E também, claro está, o José Malhoa: afinal, este homem foi excelente retratista e bom pintor de ar livre e atmosfera. Veja-se o retrato de Laura Sauvinet, veja-se o Paul da Outra Banda. E se se preferir um documento terrível, sob as aparências brilhantes da luz e da cor, olhe-se As Promessas por todo o tempo necessário até que a verdade se mostre. Estas pagadoras de promessas que se arrastam no pó requeimado pelo Sol são um retrato cruel mas exacto de um povo que durante séculos sempre pagou promessas próprias e benesses alheias. A dúvida que assalta o viajante é se José Malhoa saberia o que ali pintava. Mas isso importa pouco: se a verdade sai inteira da boca das crianças que nela não pensam como oposto da mentira, também pode sair dos pincéis de um pintor que julgue estar só a pintar um quadro.

Também nas Caldas da Rainha se deverão ver as cerâmicas. O viajante confessa que tem um sério amor por estes barros, e tão aberto que precisa de vigiar-se para não cair em tolerâncias universais. Não se toma por entendido na matéria, mas é familiar da D. Maria dos Cacos, do Manuel Mafra, dos Alves Cunhas, dos Elias, do Bordalo Pinheiro, do Costa Mota Sobrinho, para não falar de anónimos fabricantes que não punham marca nas suas peças e tantas vezes as modelavam magníficas. Se o viajante começa a falar de louça das Caldas, há o risco de levar o dia todo: cale-se pois, e siga viagem. (...)"

Viagem a Portugal
José Saramago
Caminho (1997) 

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