terça-feira, 30 de novembro de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Como homem da lavoura, Lisboa deveria fascinar-me. Seria como sair da caverna e bater à porta da civilização, largando atrás milênios vencidos, marcados pelo nós das adversidades. No entanto, a ostentação dos ricos, as fachadas suntuosas dos casarões diziam-me que seus cofres enchiam-se com as moedas produzidas por nossa labuta.

Diante do desalento social que nos imprimia a pobreza, o avô aceitou finalmente que o neto, só após sepultá-lo, tentasse a sorte em Lisboa, com a finalidade de livrar-se das agruras do arado, das estações ingratas. E obedeci, fiz o sacrifício de permanecer ao seu lado na terra natal.

- Acato sua fantasia, Mateus. Mas o Infante não passa de um fantasma que invadiu seu coração.

Finalmente chegara a Lisboa, aventurei-me a molhar as mãos nas águas do Tejo, esperando que as tágides, as ninfas de Camões, espraiassem benefícios para este lavrador. Mas de nada valeu. Seguia desprotegido a andar pelos becos, a identificar uma e outra colina da cidade, a pôr-me diante do Castelo de São Jorge, visto do Mirador de São Pedro. A conhecer a Baixa, sobretudo o Paço. Para ver de perto os janotas lisboetas, os pobres cujos andrajos clamavam por ajuda. Aturdidos como eu pela fome e pelo frio, enquanto os ricos recém-instalados nos bairros do Alto, no Chiado, na adjacência do Príncipe Real, exibiam os últimos modelos de Paris.

Que infortúnio ser quem éramos. Condenados ao cotidiano insalubre, desprovidos de prazeres, desprezados pela nobreza e pela burguesia que se fortificavam à medida que empobrecíamos.

A memória soçobrava, não ficava de pé. Eu duvidava se de facto estava em Lisboa, ainda não atracara no Cais do Sodré, que identificava. Assim, havendo saído há semanas da aldeia, das trilhas das ovelhas nos montes, fugido das pressões históricas da estrada real, das vilas e das cidades, cruzando rios de barcaça devido aos remadores que venciam as águas transportando passageiros e mercadorias, eu conseguira chegar a Lisboa.(...)" 

Um dia chegarei a Sagres
Nélida Piñon

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