terça-feira, 15 de novembro de 2022

FDJ

Folhear jornais, e lê-los, é tarefa cada vez menos vulgar e não tardará muito tempo que seja considerada completamente anacrónica, fora de moda, inconcebível, própria de velhos parados no tempo. Apesar de ter consciência disso, continuo a ser teimoso e a ler alguns jornais que  vão mantendo (ou esforçando-se por isso) o jornalismo com algum nível.

Se não fosse esta minha teimosia, nunca teria chegado ao meu conhecimento que pertenço à FDJ e tenho como companheiro Miguel Esteves Cardoso, o que não o abona a ele em nada, mas a mim me dá um prestígio incomensurável. É da autoria deste meu "confrade" a crónica que todos os dias o jornal Público insere nas suas páginas sob a designação "Ainda ontem". Hoje, o texto intitula-se "O flagelo da FDJ" e, com a devida vénia e a inveja de não saber escrever assim, aqui o deixo transcrito.

" Desde miúdo que pertenço à FDJ. Foi quando fiz a minha primeira torrada que os meus pais me inscreveram. Desde aí, sempre que posso, tenho promovido os valores da FDJ. Quando me perguntam pela sigla do crachá, ou das decalcomanias na minha mochila, digo que são da Federação da Juventude. Mas os sócios que me estiverem a ler saberão que, na verdade, correspondem a Falta de Jeito.

Quando Chico Buarque canta O meu amor, as palavras entram-nos pela consciência adentro: "O meu amor tem um jeito manso que é só seu ...". Mas a falta de jeito não lhe fica atrás: também é só minha.

Lembro-me do meu pai a tirar-me o quebra-nozes ou o berbequim ou o tira-linhas das mãos e, olhando para a cagada feita, exclamar: "Mas que falta de jeito! Chega a ser espantoso como é que um só ser humano consegue ter tanta falta de jeito". 

Começava a angústia genética: "Mas de onde é que tu herdaste essa falta de jeito? Dos teus pais, não foi. Dos teus avós, tão-pouco. Mas então de onde? Qual foi o borra-botas do antepassado que te inquinou com tanta falta de jeito, santo Deus?".

A minha mãe defendia-me, mas só superficialmente, sem convicção, alegando que eu não tinha FDJ - o que era era canhoto.

Mas não é por ser-se canhoto que se tem FDJ. O que não faltam por aí são canhotos maneirinhos, cheios de habilidades, capazes de tocar a Scheherazade de Rimsky-Korsakov com um abre-latas e um fio de pesca.

O primeiro choque do portador de FDJ é descobrir que não tem cura. Pois a FDJ tem o espantoso condão de se moldar a qualquer actividade humana. As palavras mais dolorosas que um portador de FDJ pode ouvir, ao tentar (debalde) executar uma tarefa são: "Não se preocupe. É só uma questão de jeito ..."

Pois é, lá isso é, amigo, está bem visto, sim senhor: é tudo uma questão de jeito.

É tudo uma questão de jeito até a pessoa amada se virar para nós e sibilar: "Sai daí! Tu afinal não tens jeito nenhum!". É que ninguém acredita quando dizemos que temos FDJ. Mas temos. "

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