quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Regras de brincar

Na época, os computadores não eram sequer uma miragem e telefones, fixos, apenas havia em algumas casas abastadas. Era um aparelho preto, com um disco para marcar o número pretendido, se a chamada fosse local. Se não, o zero era marcado e aguardava-se que a voz, simpática, de uma menina, ouvisse o número e estabelecesse a ligação.

Não era a época de D. Afonso Henriques mas, contado assim hoje, convenhamos que parece mesmo. Os jogos não eram de computador, de telemóvel, muito menos de consola. Não se brincava nem se jogava noutro sítio que não fosse a rua. Dos pontapés na bola de trapos à bilharda, do pião ao berlinde, do salto ao eixo à "carne sem osso", tudo se disputava no estádio ao ar livre.

Havia épocas para cada brincadeira e apenas a bola permanecia activa o ano inteiro. Os outros tinham a sua altura própria, que não constava do calendário, mas que todos sabiam e se adaptavam. Na época do berlinde, ninguém levava o pião ou a bilharda, por ser tempo perdido. Não haveria companheiros para a competição.

O pião exigia que não houvesse chuva, para que o chão estivesse seco, permitisse marcar bem a roda e o deixasse bailar. No bolso ia sempre um pião velho, para apanhar as ferroadas determinadas pelo jogo, evitando, desta forma, o desgaste do de competição.

Naquele dia, o bolso não trouxe o velho, e o pião de competição, lindo, com um bico bem grande e afiado, teve de sujeitar-se ao castigo imposto pelo falhanço. Eram cinco as ferroadas determinadas e, à terceira, já ele estava bem castigado e eram visíveis as mazelas. A quarta e a quinta foram ainda mais "dolorosas". O adversário, batoteiro, não dava mostras de querer parar. A mão esquerda não hesitou e foi lá abaixo retirar o desgraçado, que já nem beleza tinha. E conseguiu evitar a sexta ferroada que já ia a caminho. Não acertou no pião mas atravessou o indicador. Pânico na "bancada". O pião estava espetado e foi preciso alguma força para o retirar. A "torneira" abriu-se e o sangue jorrou em abundância. Alguém, mais expedito e talvez já com experiência em acidentes idênticos, atou um lenço e a "inundação" terminou.

Depois, bem, depois foi o cabo dos trabalhos para explicar em casa o acontecido,  e suportar a colocação da  gaze com tintura de iodo e o adesivo a segurar. Alguns dias depois, a boa carnadura fez o que lhe competia, embora a cicatriz ainda por cá permaneça.

O importante foi que o pião apenas apanhou as cinco ferroadas que lhe eram devidas.

2 comentários:

Anónimo disse...

Retirada estratégica para evitar males maiores…. .ao pião.

Anónimo disse...

Assim se forja um homem corajoso e altruista! 🤣