quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Futebol

O comboio não ia cheio, longe disso. Porém,  a julgar pelo barulho que se ouvia de dentro da carruagem, os poucos passageiros eram suficientemente ruidosos para se julgar que até haveria gente a mais. 

Naquela carruagem não estariam mais de uma vintena de pessoas, distribuída pelos vários bancos, sempre no singular, salvo as que pertenciam à mesma família ou à tentativa de a vir a constituir. Lá ao fundo, no átrio de acesso ou de saída, um grupo, pequeno, discutia, bem animado, os últimos resultados do futebol, a justiça dos mesmos, o falhanço do penalty, o erro do árbitro no off-side. Afinal, o barulho imenso que se ouvia era apenas daquela meia dúzia, todos bem dotados de garganta e de velocidade de argumentação, sempre sobreposta na do parceiro, tornando a conversa uma gritaria que mais ninguém conseguia compreender. A preocupação era gritar mais alto, sempre mais alto, cada vez mais forte. Pouco importavam os argumentos, as expressões, as frases. Os gestos, os esgares, os pontapés no ar e, por vezes, na carruagem, eram a expressão dos afectos pela discussão enriquecedora e interpretativa, num espectáculo para outrem usufruir, obviamente sem qualquer prazer.

O "pica" entrou na carruagem, munido do necessário alicate, irrepreensivelmente fardado e com o seu boné castanho, com emblema, na cabeça, exibindo autoridade  e mostrando à evidência que a CP lhe tinha confiado a manutenção da ordem pública dentro do comboio. Todos lhe teriam de mostrar o bilhetinho, pequenino, adquirido na estação onde haviam entrado e mencionando aquela onde saltariam para fora. Era esse minúsculo papel que lhes garantia o direito de viajar.

Mal o "pica" assomou ao corredor, o barulho lá do fundo cessou como que por milagre. O "jogo" tinha acabado e os participantes preocupavam-se em sair rapidamente do "campo". Não havia saída ...

- São vinte escudos a cada um, para não os entregar à Polícia na próxima estação.

Sem comentários: