domingo, 19 de setembro de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Regressara a França poucos dias depois de completar 18 anos, repatriado de Mauthausen através da Cruz Vermelha, num comboio que fizera o percurso inverso daquele há quase quatro anos. Um comboio que transportava, não propriamente sobreviventes, mas antes restos, despojos físicos, do que haviam sido seres humanos, agora deserdados de saúde, de alegria, de família, de lugar de regresso, de vida a que voltar. Da janela do comboio, na travessia da Alemanha e da Itália, vira cidades em ruínas ainda fumegantes, casas e fábricas destruídas e gente vagueando por entre as ruínas, aparentemente tão perdidos de destino quanto eles. E campos bombardeados, árvores queimadas, colheitas perdidas no chão, searas por fazer, animais mortos caídos na soleira das casas: só então se deu conta da barbárie que se passara lá fora, para lá dos muros da prisão em que estivera nos últimos anos e onde acabara por se convencer de que toda a vida que existia começava e acabava ali e se resumia a sobreviver um dia atrás do outro.

Fora directo ao campo de internamento de onde partira com o pai, em Dezembro de 41. No dia seguinte apresentou-se nos escritórios dos registos, onde era suposto as autoridades dos campos terem guardado os dados relativos a todos os internados espanhóis que por ali tinham passado ou que ainda lá estavam. Esperava que assim fosse, de facto, que tivessem os registos em ordem e que, entre eles, constasse o paradeiro actual da sua mãe e da sua irmã, a pequena Sara, de quem ele já quase não se lembrava. Foi recebido por uma funcionária ainda nova, com um ar cansado mas simpática, e que ainda mais simpática se tornou depois de consultar o seu próprio registo e confirmar que ele tinha saído dali para Mauthausen quatro anos antes e que agora estava de regresso: sobrevivera à traição dos franceses e à demência dos alemães. Mas, infelizmente, os passos seguintes confirmaram também que os registos estavam actualizados e que podiam ser implacáveis.(...)"

Último olhar
Miguel Sousa Tavares
Porto Editora (2021)

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