Cada um tinha a sua secretária, num rés-do-chão enorme, ali mesmo, no Largo do Calhariz de boas memórias. As secretárias estavam colocadas frente a frente ou formando um quadrado, com excepção da secretária do chefe, única isolada e colocada num ponto estratégico. Quem manda deve ter uma visão ampla sobre todos os "artistas". O balcão era assegurado em rotação diária, com a ajuda de todos, sempre que a afluência o justificava.
O departamento tinha várias secções, cada uma com tarefas específicas e independentes, exceptuando a que assegurava o economato. A essa, todos iam requisitar as fitas para as máquinas de escrever, as folhas de papel químico, as réguas, as esferográficas, os lápis, as borrachas, em suma, todo o material necessário à burocracia do dia a dia.
O chefe do economato era um homem já de idade (um velho, para um jovem ainda longe dos trinta), com um sotaque açoriano bem carregado e um nome pouco habitual - Herlander.
- Bom dia, Sr. Herlander. O Sr. Correia disse-me para vir ter consigo, para me dar as "ferramentas" habituais.
Foi lá atrás dos armários e voltou pouco depois com uma mão cheia de material.
- Aqui tens: uma esferográfica azul, outra vermelha, um lápis, uma borracha e ... fumas?
- Fumo, sim, Sr. Herlander, respondi sem problemas. Naquela altura, toda a gente fumava e eu era apenas mais um.
Voltou-se e retirou da prateleira um cinzeiro enorme, de vidro, pesadíssimo, verifiquei depois.
- Assina aqui e, já sabes, esferográficas só são substituídas com a entrega da vazia. E poupa nos lápis. Temos poucos ...
Tinha acabado, poucos dias antes, de desembolsar vinte escudos no espólio da tropa, por me faltar o quico, que desapareceu ou foi perdido nos últimos dias. Não me apetecia assinar nada e a irreverência falou mais alto.
- Desculpe, Sr, Herlander, mas levo só o cinzeiro. Não preciso do resto.
- Tu é que sabes, mas não me venhas pedir amanhã ...
Nos mais de quarenta anos seguintes, utilizei sempre as minhas "ferramentas" e até o cinzeiro foi dispensado, quando me "curei" do vício.
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