quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

Esta "secção" costuma ser utilizada apenas para transcrever pequenos excertos de livros que se estão a ler, ou que foram terminados há pouco tempo, e ainda não tomaram o caminho para o seu lugar de descanso. Desta vez isso não acontece. Mas há uma razão, forte, para tal.

Ontem faleceu um, na minha modesta opinião, excelente escritor açoriano, relativamente pouco conhecido e cuja partida mereceu apenas umas referências de rodapé, indo, quem sabe, ao encontro da sua pouca propensão para a ribalta.

Na "estante" cá de casa há cinco livros de Cristóvão de Aguiar (08.09.1940-05.10.2021), lidos com bastante agrado em tempos idos. Para memória futura, ficam por aqui "meia dúzia" de linhas de MARILHA, livro editado em 2005, romanceando a vivência nos seus Açores. Podiam ser de Trasfega, Raiz comovida, Braço tatuado ou Miguel Torga - Um percurso partilhado, mas foram estas que saltaram na primeira abertura.

"(...) Auscultou-a com esmiuçado reparo. Palpou-lhe a barriga como se estivesse amassando um alguidar de pão. O doutor Virgínio de Medeiros. A cara atenta e franzida, fino de feições. E de repente a ruga funda, no início da testa, prolongando-lhe do lado esquerdo a cana do nariz, aprofundou-se ainda mais. Chamou o marido de parte, atrigado e portador de sinais visíveis de apoquentação. Mansamente foi-o informando que só para a operação. De corte urgente se tratava. Caso contrário, podia dizer adeus à mulher e mudar de estado. Só para os preparos da faquinha, eram mil patacas. Não contando com a aposentadoria no Hospital da Misericórdia da Ribeira Grande. Se ele dispusesse do dinheiro, muito que bem. Operava-se a mulher. Se o não tivesse, que fosse por ele ao sogro, ou que este ao menos se afiançasse pelo pagamento. Dentro de três semanas, o mais tardar um mês. Nele depositava toda a confiança. No sogro. Tratara-o quando caíra, desamparado, da armação do tecto de uma casa em construção. Ficaram amigos. Não sendo assim, que fosse com Deus bater a outra porta. Na dele não seria servido ...

Casados de fresco. Seis, sete meses. Castigo divino? Nunca se sabia. Mal a matar com os pais dela, sogros dele. Pedia-lhes a benção, segundo a lei vigente em Tronqueira e seu termo debruado de outras ilhas. E a mulher também. Às vezes nem resposta ouviam, de tal forma entredentes pronunciada. Deus te abençoe. (...)"

Marilha
Cristóvão de Aguiar
Dom Quixote (2005)

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