terça-feira, 26 de outubro de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

"(...) Lembro-me de que ainda antes de eu propriamente dar entrada nas instalações prisionais, nós ainda no gabinete do juiz que se preparava para me fazer as perguntas da praxe com vista à legalização da minha prisão, tinha entrado um ansioso procurador da República com a novidade de que a rádio acabava de anunciar que, por decisão do Governo, transmitida pelo Ministro da Cultura e das Artes Cénicas, o escritor Lopes Macieira ia ser homenageado com os célebres funerais de Estado, aquela paródia em que, depois de algumas leviandades pelo meio, como, por exemplo, missa de corpo presente, o caixão dirige-se ao cemitério ladeado por tropas de arma aperrada como se estivessem a defender o defunto de algum ataque iminente com vista a impedir que seja enterrado ... Ambos riram dessa maneira pouco canónica e algo descortês de falar, mas eu sequer sorri. No entanto, lembro-me realmente de logo ter pensado, Ele fica a dever-me esta honra! E como se tivesse adivinhado os meus pensamentos, o procurador olhou para mim, sorriu e quase sem transição disse, Olhe, ele fica a dever-lhe essa grande honra, até hoje a muito poucos concedida!

Desta vez fiz uma espécie de um leve sorriso e apeteceu-me comentar que era uma grande verdade o que ele acabava de dizer, o Macieira ficar a dever-me essa honraria sem talvez a merecer, mas considerei que estávamos no meio de uma audiência judicial, ainda que no gabinete do juiz, e não seria de bom tom diminuir ainda mais a pouca solenidade do momento. O jovem que estava sentado ao meu lado, mandado chamar pelo juiz para me servir como meu defensor oficioso embora ainda não tivesse aberto a boca para coisa alguma, sequer para me cumprimentar quando entrou, é que disse quase a medo, O único escritor cabo-verdiano que até hoje teve direito a funerais de Estado foi Eugénio Tavares, que morreu em 1927.(...)

A confissão e a culpa
Germano Almeida
Caminho (2021)

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