terça-feira, 4 de outubro de 2022

Semelhanças

A senhora professora andava preocupada com o comportamento do Carlinhos. Há já muito tempo que não participava nos debates da aula, não emitia opiniões, não contava estórias, não dizia asneiras, e só respondia, apenas por monossílabos, quando directamente questionado. Estava muito diferente do Carlinhos anteriormente interventivo, muitas vezes inconveniente, crítico dos colegas, comentador verrinoso, falador pelos cotovelos.

Por isso, a senhora professora achou que daquele dia não passava e iria directa ao assunto, para resolver o problema de vez.

- O menino Carlinhos tem algum problema que, eu ou os seus colegas, possamos ajudar a resolver?

 - Não, senhora professora, respondeu secamente.

- Então porque não participa nas aulas como fazia antes?

O Carlinhos hesitou durante alguns segundos. Os olhos da professora fitavam os seus, acusadores e acutilantes. Aqueles olhos mantiveram-no quieto e sem hipóteses de fuga à pergunta.

- Cansei-me, senhora professora. A senhora sabe tudo, ensina tudo, tem razão sobre tudo, até sobre a necessidade de usar sobretudo no Inverno, veja lá. Como posso eu participar se a minha ignorância é imensa e, na grande maioria das discussões, qualquer frase que eu diga é mal entendida, gozada pelos meus colegas e por si recriminada.

A professora embatucou e precisou de algum tempo para se recompor. Não lhe ocorria nada que servisse para quebrar aquele ruidoso silêncio que se instalou. Foi o Carlinhos que deu a volta à situação:

- A senhora professora sabe a semelhança entre uma sapataria e o forno da minha avó?

A vontade da professora era calá-lo de imediato mas, depois de tudo o que tinha dito, não seria pedagógico. Rendeu-se.

- Eu não, mas o menino vai ensinar-me, claro.

- Na sapataria, há sapatos. No forno, a minha avó assa patos.

A professora corou e, de imediato, continuou a explicar a gramática, enfatizando que o grito "Não à guerra" é muito diferente da afirmativa "Não há guerra", embora se pronunciem da mesma forma.

1 comentário:

Anónimo disse...

Ouve, Carlinhos, por aqui nunca houve um texto que tanto sensibilizasse a professora. Parabéns!