segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

Os pressupostos e as consequências da guerra pouco diferem ao longo do tempo. Quando este livro foi publicado (2017), "apenas" havia sido anexada a Crimeia, balão de ensaio para o que agora se assiste e não se sabe quando irá parar. A menos que ... 

"(...) Em 1972, fui mobilizado para Angola, para uma guerra que se arrastava penosamente desde Fevereiro de 1961. Um conflito que infectava o corpo do país como doença insidiosa. No silêncio do seu pus, traiçoeira, a enfermidade gangrenava as soluções futuras.

Apesar de todos os avisos da História, os políticos da ditadura esqueceram-se que as guerras devem ser ganhas rapidamente, antes que os militares se cansem e o seu entusiasmo se torne rotineiro, a sua paixão em enfado. E, quando tal acontece, aquilo que parece ser uma vitória óbvia acaba por empurrar os exércitos para inevitável derrota. Derrota que nem sempre é um revés militar mas a prostração moral que mina vontades e torna a vitória um destino nebuloso, indesejável pelo sacrifício a que obriga. A ilusão dos primeiros instantes transforma-se em penosa realidade. Às marchas heróicas sucedem-se hinos fúnebres, aos discursos laudatórios seguem-se orações de encomendação, os risos transformam-se em choro, os passos de dança em arrastar de pés atrás de urnas, a esperança em desespero, a energia em cansaço, o amor e a canção em soluço, o desejo em repugnância, as cores garridas dos vestidos das mulheres em panos de luto.

É o tempo da fuga e da revolta.

Paradoxalmente, a guerra é o pior inimigo daqueles que querem conservar os povos subjugados, o mundo imutável. Os que governam o planeta esquecem-se disso, parecem ignorar que este é composto de mudança, como cantou o vate, e que os conflitos apressam a transformação, acrisolam o corpo social. Despojada do conforto, a sociedade deixará de ser a besta aquietada para se tornar no monstro que escarnece do bom senso e se regenera pelo excesso. (...)"

Coleccionadores de sonhos
António Oliveira e Castro
Gradiva (2017)

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