sábado, 15 de outubro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

No dia em que Agustina completaria 100 anos, abre-se o armário, retira-se um dos vários livros dela que por lá descansam e, à sorte, surge isto:

"(...)
- Tire lá a salva de prata que não é precisa. Quer dizer que o defeito é um condutor de felicidade?

- Exactamente. A perfeição não é erótica. É o erro que é erótico e não a beleza.

 O doutor Horácio punha-se a pensar se Maria Rosa durante toda a vida de casada não estivera sempre informada das escapadelas do Nabasco que, afinal, não tinha necessidade de ter amantes. Os mandamentos não se destinam a promover a perfeição do homem, mas a medir as suas imperfeições, mais necessárias do que ímpias. "Será que ela viu isto?" - pensou o doutor, fazendo como de costume o gesto de acertar os óculos no nariz como para ter a certeza de que eles lá estavam.

Judite não reclamava por não acompanhar o marido e estabeleceu-se um acordo entre eles que agradou a todos: estavam casados, mas fora de certos compromissos que só convinham a uma linhagem, a um nome de família em permanência. Não faziam nem aceitavam convites juntos, não eram vistos ao mesmo tempo em lugares de recreio ou de cerimónia. Isto criava uma falta de cumplicidade que afinal lhes deixava a independência da vontade com respeito à sua própria diferença. Contudo, não ficava esclarecido se o casal se amava ou se experimentavam um conceito novo de matrimónio.

Judite não entrava nestas cogitações e limitava-se a ser uma boa criada, aproveitando as suas folgas da maneira que lhe dava mais prazer e que era a de ser útil e descomprometida. Quando fazia um cruzeiro achava sempre maneira de se ocupar das crianças nos infantários ou dos cães nas suas jaulas de bordo. Nunca se queixava de nada e comia a sopa fria sem repugnância e esperava pacientemente que lhe mudassem a roupa do seu beliche. Ao terceiro dia de viagem já a tinham reconhecido como a hóspede  encantadora e guardavam-lhe um lugar abrigado ao lado da piscina, como se ela fosse uma parenta incógnita. Era tudo natural, sem troca de benefícios; ao fim da viagem, ela partia deixando uma saudade atrás dela. Tanto a empregada da faxina, como o rapaz do bar, e até o capitão que, para a experimentar, lhe apertara o braço de maneira convidativa, guardavam um pequeno despeito de amor vendo-a sair com as suas malas de mão que, de repente, a denunciavam como uma pessoa rica. Que andara ela a fazer senão a enganá-los a todos? (...)"

A ronda da noite
Agustina Bessa-Luís
Guimarães Editores (2006)

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