sexta-feira, 21 de outubro de 2022

Partidas do tempo

A paragem do autocarro estaria a, sensivelmente, um quilómetro do sítio onde moravam e era o limite para os seus passeios mais ou menos diários. Eram mãe e filha, respeitavam-se muito, mantendo a distância e eliminando as confianças impróprias e contrárias à "boa educação". Falavam, ou melhor, sussurravam de forma quase imperceptível tornando muito difícil que outros pudessem entender o que diziam.

Para além de o volume das vozes ser extremamente baixo, cada palavra demorava uma eternidade a ser soletrada. Uma frase pronunciada por uma, só era entendível pela outra após terem percorrido umas boas dezenas de metros, sem pressas, como convém a quem já evidenciava algumas dificuldades de locomoção e tinha tempo de sobra para chegar ao destino.

A noite anterior tinha trazido muita chuva, os buracos da estrada ainda mantinham as poças de água, confirmando a violência com que S. Pedro tinha despejado os penicos do céu.

- Óóó ... mãããe ...

- Siiim ... fiiilha

- Oooolhe ... Saaabe ...

- O quêêê ... fiiilha?

- Uuuuma deeesgraça ...

- Que aconteeeceeeuuu?

- Mooolhei um pééé

- Mooolhaste um pééé, fiiilha?

- Siiim ... mãããe

- E agooora?

- Teeemos de voooltaaar a caaasa.

- Aaachas?

- Siiim ... mãããe

- E pooorquêêê?

- Teeenho o pééé tooodo mooolhado

- Ah ... entããão vaaamos

- Siiim ... mãããe

- Pooodes reeesfriiiar

- Pooois 

O passeio ficou por ali e consta que, quando chegaram a casa, o pé já estava enxuto.

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