quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

Chegou ontem e vai ter de aguardar que o actual seja concluído. Vai passar à frente dos que já se perfilavam na linha de partida ou não fosse ele mais um para juntar a todos os outros do mesmo autor, sempre em lugar (muito) especial. Longe vai o tempo em que era possível ler mais do que um ao mesmo tempo, sem perder o fio de cada meada. Além disso, os livros do ALA são sempre lidos em exclusivo, por a qualidade a isso obrigar e não poder haver devaneios. Cada palavra tem um sinal, um significado, um fito, uma justificação.

Mas, como sempre, a curiosidade foi mais forte: abri, deliciou-me logo a dedicatória "Aos meus irmãos João e Pedro porque toda a vida fizemos chichi juntos, lado a lado, para a cascata do jardim." A página seguinte mostrou a qualidade do costume e a vontade de ler não deu tréguas. Começa assim:

A solidão mede-se pelos estalos dos móveis à noite quando a poltrona em que me sento de súbito desconfortável, enorme, e os objectos aumentam nos naperons, inclinados para mim a escutarem, a quem terá pertencido a santinha de talha a que falta um dos dedos, que garganta tosse dentro da minha a chamar, que segredos são estes de que não entendo as palavras, o que desejam ao certo vindos de uma gaveta empenada, cheia de laços de cabelo desbotados e fotografias antigas, por exemplo um bombeiro com uma criança ao colo

(-Tio Quê)

e o vento que suspira na chaminé à procura, tantos ossos a mais no meu corpo, tantos dedos nas mãos, o médico no hospital para mim

- Vamos ver vamos ver

enquanto os tubos do estetoscópio se enrolam na mesa num vagar carnívoro e lá fora, na rua, uma ambulância se afasta a gritar, há quantos anos morreu a minha mãe, meu Deus, a solidão e um pingo de torneira que atravessa o escuro desde a cozinha aqui ou um gonzo de janela, quase vivo, a bater não sei onde, e qualquer coisa, encostada ao caixilho, a repetir o meu nome, o médico sublinhava análises num vagar severo enquanto o olho esquerdo dele aumentava até mim e baixava de novo, com a ponta da caneta a insistir no papel e um dos sapatos, sei lá a razão, me incomodava, já agora qual o motivo de a minha mãe não estar comigo como quando, em pequeno, depois da luz apagada, me poisava a palma no cabelo antes de se ir embora, olha o som dos passos dela cada vez menos nítido, olha a voz do meu pai na sala, tão longe

- Que medroso o pequeno

enquanto eu descia o declive dos lençóis na direcção do sono, afundando-me para além da cave onde uma máquina de costura avariada (...)

O tamanho do Mundo
António Lobo Antunes
D. Quixote (2022)

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