sábado, 29 de outubro de 2022

Desabafos

Conheci, há muitos, muitos anos, um homem que tinha sido motorista do Ministro do Interior, como era, na época, designado o actual Ministro da Administração Interna. Desempenhava ele essa função, de forma meritória, pela certa, quando saiu uma lei impedindo os funcionários públicos de poderem ter outra actividade. Parecia de propósito: ele tinha acabado de assinar um contrato de arrendamento para a exploração de uma bomba de gasolina na capital (bem perto da Gulbenkian, de onde saiu não há muito tempo) e, claro, ficou muito preocupado. 

Para conseguir dormir sossegado, contou a situação do Ministro e obteve como resposta, clarinha como água, uma frase lapidar:

- A., não te preocupes. Isso não se aplica a ti. É só para outros ...

O 25 de Abril trouxe, nas intenções e no papel, a universalidade da aplicação das leis, de forma atempada e justa. Quase meio século depois, continuamos a assistir a julgamentos na praça pública, a situações investigadas durante anos para acabarem no cesto dos papéis, a presenciar expedientes que prolongam os processos até às calendas, a constatar que a justiça, se chegar, poderá ser tudo menos justa.

É conhecido, e faz lei, que o tempo da justiça não pode nem deve ser o da cacha jornalística, muito menos o da câmara e do microfone em punho perseguindo quem é acusado de prevaricar e sem lhe permitir o pleno direito à defesa e à justificação na sede própria: os tribunais.

Porém, permitir que aos fogachos se sucedam os dias, os meses, os anos sem fim à vista, que os expedientes sejam regra e as habilidades sejam correntes, apenas contribui para que a justiça, se um dia chegar, seja tudo menos justa.

A continuarmos assim, corremos o risco de o tribunal aplicar a lei, sem remissão, ao roubo da lata de atum e deixar morrer solteira a culpa de quem "apenas" assinou um contrato que nem leu ou levou um banco à falência.

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