sexta-feira, 28 de maio de 2021

28 de Maio

Conheci-o em 1974, quando cumpria o serviço militar obrigatório. Nunca mais o vi e já por cá não deve estar, que os anos não contam só para mim. Teria, nessa altura, talvez 50 anos, idade que, para os jovens dessa altura, significava ser já um "velho do caraças".

Era um "cabo chico", lento de raciocínio, sempre pronto a fazer continência nem que, para isso, tivesse de ir buscar a boina ao cabide (a continência não se concretiza com a cabeça descoberta). Repetia, vezes sem conta, interrompendo conversas ou quando conseguia espaço para "botar faladura", a frase que lhe enchia a alma: eu estou com o MFA; sou militar das Forças Armadas!

Martelava a máquina de escrever Messa apenas com os dois indicadores e usando uma força tal que o papel tinha dificuldade em resistir. Estava sempre disponível, tinha sentido de humor e ficava visivelmente satisfeito quando conseguia ser útil, na vertigem dessa época. Na maior parte das vezes não percebia o que estava a acontecer, mas queria que o soubessem participativo e disponível para os novos tempos.

A mulher era telefonista num banco que, tal como a profissão, já não existe. Mal chegava, logo pela manhã, o "nosso cabo" levantava o auscultador do telefone e gritava para o telefonista, como se fosse necessário gritar para ele o ouvir, estando no último piso do edifício.

- Liga-me ao número ....

Aguardava a ligação e mal ouvia a voz esperada e conhecida, dizia:

- Olha, já cheguei. Até logo.

A cena repetia-se à saída para o almoço,

- Olha, vou almoçar. Até logo.

e de novo à chegada, já com a barriguinha cheia.

- Olha, já cheguei. Almocei .... Até logo.

Quando chegava a hora da saída, perguntava para a "geral":

- Alguém precisa de ajuda? Então até amanhã.

Mas antes, ainda tornava ao telefone, para informar que

- Olha, vou sair. Até já.

Era um homem muito preocupado com os novos tempos e com o que lhe poderia acontecer, embora não causasse preocupação a ninguém e contasse apenas para algumas tarefas básicas. Por tudo e por nada repetia que nunca tinha feito nada de mal, nem sequer tinha ido à guerra. Cumpria todas as ordens, sem discussão. Fora sempre assim e assim iria morrer, dizia.

-  Não diga a ninguém, peço-lhe pela sua saúde, mas eu vivo sempre a pensar que podem correr comigo. Eu não sei fazer mais nada e a idade já não dá para aprender.

- Descanse, homem, ninguém lhe faz mal.

- A minha mulher é neta do Gomes da Costa ...

- O do 28 de Maio?

- Sim. O da revolução de Braga que abriu as portas ao Botas. Mas fique sabendo que ele, depois, arrependeu-se e até chegou a ser do contra.

1 comentário:

Anónimo disse...

Aparece aqui cada texto! Que figurinha bem mandada!
Não fora assim e seria o "cabo dos trabalhos".