segunda-feira, 31 de maio de 2021

Livros (lidos ou em vias disso)

Outros tempos?!

Que país existiria hoje se, como se fantasia neste livro, o Botas tivesse morrido em 1940, trinta anos antes da "despedida" efectiva.

(...) Na entrada dos Armazéns do Chiado, um cavalheiro de chapéu proíbe a aproximação de um mendigo com uma cuspidela para a calçada e diz "Tenha paciência". Rebeca, que já se cansou dos elogios dos estrangeiros à magnífica luz de Lisboa, nunca ouviu ninguém falar dos roncos da cidade. Uma cacafonia de escarros, ganidos, buzinas de automóveis, atropelamentos, gaivotas esganiçadas que cagam as praças, pregões de gente descalça e tão desprovida de vocabulário como de meios para comer uma refeição quente por dia. Os homens açambarcam as ruas, esperam nas esquinas, acotovelam-se nas praças. Quando Rebeca tentou beber um chá na Pastelaria Suíça, disseram-lhe que não serviam senhoras desacompanhadas. As poucas mulheres que se apresentam em público carregam sempre alguma coisa - canastras de peixe e bilhas de água na cabeça, as compras da patroa, os filhos no colo, os chapéus finos das bem casadas, as ordens do pai ou do marido. Até a flauta do amolador parece a Rebeca um hino à resignação da tristezazinha portuguesa. Detesta diminutivos e o som dos lábios dos carroceiros a incitar as mulas, esse trapejar de cuspo que os homens também usam para chamá-la na rua. Despreza a minoria de ricos que desdenha a pedinchice da multidão de pobres. Não suporta os atrasos, os almoços de três horas e quatro garrafas de tinto, o vossa excelência, o nepotismo magnânimo, que não beneficia apenas o filho do arquitecto como ainda arranja um biscate ao sobrinho do caseiro.

A família desce pelas escadinhas da Rua de Santa Justa, dirige-se ao mercado da Praça da Figueira. Rebeca sabe que Paixão Leal escolheu a rota que foge ao Rossio, evitando os peregrinos que, desde o mais recente ataque dos terroristas judeus, acodem à Igreja de S. Domingos. O engenho explosivo deflagrou durante a missa, matando oito pessoas e ferindo dezenas. Movidos pela morbidez e ciosos de um milagre, os curiosos querem saber onde tombaram os mortos e ver a cratera da bomba, na qual acreditam ver a silhueta de Nossa Senhora esboçada a negro pelas chamas da fachada.(...)

Deus Pátria Família
Hugo Gonçalves
Companhia das Letras

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