sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Boné

Nos últimos dias andava pensativo, cabisbaixo, sem a alegria e a boa disposição do costume, sem paciência para ninguém e, muitas vezes, respondão. Alguma coisa o preocupava. E muito.

Era sempre o primeiro a chegar, ainda o sol não se havia levantado, e o último a sair, já com a lua a preparar-se para iluminar o caminho de regresso a casa. A sua preocupação era manter o jardim bonito, verdejante, florido, um brinquinho. Detestava ser chamado à atenção quando havia algo que corria menos bem, quando se excedia na poda de um arbusto ou um canteiro demorava mais tempo a florir.

Quem viria de noite para o jardim? Não em todas, é verdade, mas de dois em dois, de três em três dias apareciam pegadas no saibro, duas maiores e outras tantas um pouco mais pequenas, de dois caminhos diferentes mas com um destino comum: a casa da ferramenta.

- Aqui há gato, dizia. E gata também, pensava. 

Imaginava a enxerga da sesta a servir de cama e isso não era coisa que lhe agradasse. A vontade de descobrir convenceu-o. O cordão era resistente e escuro, e havia duas árvores em frente uma da outra, logo após a curva que iniciava a descida. Ao final da tarde, bem esticado, uma ponta atada a cada árvore, mais ou menos a dez centímetros do solo, o cordão ficou preparado para a armadilha nocturna. Assim fosse dia de "o gato vir às filhós", o que já não acontecia há quase uma semana.

Logo pela manhã verificou que tudo tinha corrido como planeado. Havia pegadas nos dois caminhos e um espaço enorme com o saibro revolvido e vestígios de mãos a arrojar por ele. O cordão partira-se mas cumprira a função, admitiu. A queda devia ter sido dolorosa para o viajante nocturno, mas havia passos marcados até à casa. Apesar da queda, a festa não devia ter ficado estragada.

- Bom dia. Este boné é seu?

- É meu, é. Perdi-o ontem. Onde o encontraste?

- Estava ali em baixo, no meio das heras.

A cara mostrava um pequeno raspão na testa e o homem tentava evitar que lhe vissem as mãos. Nada de grave, pensou.

A conversa ficou por ali. Ambos sabiam que há evidências que nem sequer vale a pena insinuar, quanto mais explicitar e que há lugares que não se devem visitar sem autorização.

1 comentário:

Anónimo disse...

O melhor é andar de cabeça descoberta...