sábado, 4 de junho de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

(...) O padre estava a fechar as portas da igreja quando me avistou. Olha quem ele é!, exclamou, e convidou-me a entrar, já jantaste? Não tenho fome, respondi. Romano cheirou o ar. Um jantar daqueles mais líquidos, hã?

Atravessámos a capela e subimos à sala de música. Um piano, duas velhas guitarras, um contrabaixo aconchegado no seu saco. Um Cristo na parede com a pintura esfarelada. O padre foi buscar uma garrafa de vinho e dois copos; serviu-me, serviu-se. Bebemos ao mesmo tempo. Que a paz esteja contigo, disse Romano. E contigo, respondi.

Sentados em duas velhas cadeiras, contei-lhe a história dos últimos dias. Ele sabia de algumas coisas. Da minha vida, aliás, conhecia praticamente tudo, ou, pelo menos, as partes importantes. Em 2008, no princípio do longo deserto da minha carreira literária - antes de descobrir que era mais feliz sem escrever -, procurara ajuda em toda a parte. Meditação, hipnose, yoga, psiquiatria, religião. Queria uma solução rápida para aquilo que só o tempo podia resolver; queria a panaceia imediata para uma dor antiquíssima. O padre Romano pareceu-me a melhor opção. Não se preocupe, dissera-me ele, numa das nossas primeiras conversas depois da missa de domingo - eu, um agnóstico confesso! -, Deus sabe melhor que nós aquilo que nos faz falta. Mas o senhor padre não compreende ..., começava eu, numa litania do desespero. E ele escutava-me, paciente, com um sorriso no rosto, aquele sorriso irritante de quem vai à frente, já conhece o caminho e sabe que ele conduz, não à fantasia de um apocalipse, mas a vales frondosos onde a nossa alma deambula pacificada.

Pratique a oração, pode ajudá-lo, recomendou-me, nessa altura. Não sei rezar, respondi. Não precisa de saber, sente-se na beira da cama e feche os olhos, não peça coisas materiais, nem prosperidade, muito menos Lhe peça para voltar a escrever. Então peço o quê? (...)

Naufrágio
João Tordo
Companhia das Letras (2022) 

Sem comentários: