sexta-feira, 3 de junho de 2022

Prego

Funcionava na esquina do Largo com a rua apertada, numa loja autónoma a cerca de cem metros da agência da Caixa Geral de Depósitos. A designação Casa de Crédito Popular encimava a porta e as letras eram idênticas às da CGD, embora mais pequenas. Ninguém se lhe referia pela designação oficial: era o "Prego" da Caixa. 

Os seus dois empregados só em finais da década de setenta do século passado foram integrados nos quadros. Até aí, tinham autonomia completa, só respondiam perante os serviços centrais da capital, auferiam vencimentos distintos, sem carreira definida nem evolução obrigatória. A dada altura, alguém achou que pagar a renda da loja era um desperdício e determinou a integração do "Prego" nos serviços da Agência, com a consequente subordinação hierárquica e a afectação de apenas um dos empregados à actividade autónoma que continuou a ser desenvolvida.

O "Prego" manteve-se em funcionamento até meados dos anos oitenta, quando o senhor JP, único funcionário que percebia alguma coisa daquilo, se reformou. Acabaram os serviços de crédito popular, como era previsível há muito. O senhor JP avaliava os "trainecos" que lhe traziam para garantir o empréstimo pretendido. Do ouro aos lençóis bordados, dos fatos de casamento às máquinas fotográficas, dos gira-discos às máquinas de escrever Messa ou Remington, aparecia de tudo. O senhor JP tinha indicações para só aceitar ouro e metais preciosos mas exorbitava, com a autoridade dos anos, e nada recusava, atento às necessidades de cada cliente, cigano ou pescador, agricultor ou comerciante.

Os empréstimos concedidos pagavam juros trimestrais, não havendo reembolso de capital, que só aconteceria quando o cliente conseguisse reunir a verba que lhe havia sido emprestada. A liquidação integral permitia reaver o bem que havia "dormido" no cofre ou na arrecadação do sótão durante, muitas vezes, tempos infindos. A não liquidação atempada dos juros implicava a venda do bem, dado de penhor, em leilão público, o que era raro acontecer. Os devedores cumpriam e, se de todo isso lhes era impossível, apareciam a justificar-se e, não raro, a trazer novo bem para reforçar a garantia e obter "mais algum". JP encarregava-se de os contactar, deslocando-se à respectiva residência, para entender as razões do atraso.

Os clientes do "Prego", habituais, usavam bens, muitas vezes de família, para financiarem as suas necessidades, os seus negócios, a sazonalidade das suas ocupações, sem burocracias e sem favores.

- Vale 100. Emprestamos 80.

Quando os serviços encerraram definitivamente, os bens e os contratos foram transferidos para a capital, que centralizou tudo na Rua Vale do Pereiro. Acabou o "Prego" público na cidade e alguns passaram grandes dificuldades para reaverem o que, de facto, era seu. Faltava o JP ...

Sem comentários: