quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Acordo ortográfico

Ao ler hoje o Público, deparei com um artigo do jornalista Nuno Pacheco, que li com um sorriso nos lábios e uma inveja descomunal de não ser eu quem escreveu. Com a devida vénia e os parabéns ao autor, transcrevo-o com imenso gosto. Justifica bem o trabalho de dactilografia a que me sujeitei e, apesar de mais longo do que é normal por aqui, vale a pena ler.

Viagem alucinante pelo país das cinco ortografias

Por má sina ou fatalidade, há coisas de que não nos livramos. Podemos livrar-nos de Trump, poderemos até livrar-nos do bicho coroado que nos atormenta, mas há um mal que continua a perseguir-nos sem desfalecer e que alastra com uma praga: a pseudo-ortografia. Houve até quem, de forma brilhante e acertadamente, lhe inventasse nome: pentaortografia. Num artigo bem recente, de 5 de Dezembro, no Diário do Minho, M.Moura Pacheco (ao qual, apesar do apelido, não me unem laços familiares) veio explicar de forma sucinta este magno problema.

Começa assim: "Quando eu aprendi a escrever, havia duas ortografias: a certa e a errada. Agora há, pelo menos cinco. E todas autoconsideradas certas - é a pentaortografia." Quais são? Ele explica: primeiro, a ortografia clássica ou antiga (a do acordo, ou reforma, de 1945); depois, "a do chamado 'acordo ortográfico' que, por sinal, nunca foi acordado"; em seguida, há "a ortografia do 'superacordo' ou dos fanáticos do 'acordo?. São aqueles que não podem ver uma consoante antes de outra sem que, zelosamente, a façam cair"; em quarto lugar vem "uma mistura das três anteriores, em doses e proporções ao gosto de cada um, em cocktails sortidos de um extenso cardápio"; e, por fim, a quinta ortografia: "É a que não se integra em nenhuma das anteriores, que está errada à luz de qualquer delas, que desvirtua a fonética, atraiçoa a etimologia, ofende a morfologia e atropela a sintaxe. Uma espécie de sublimação da anterior. Mas é, talvez, a mais popular de todas." Daí esta conclusão do autor, professor universitário aposentado: "Das duas velhas ortografias, o 'acordo? que ninguém acordou conseguiu fazer cinco - a pentaortografia. É o que se chama produtividade cultural!!! Outra voz que se tem levantado, com regular insistência, contra tal realidade e dando exemplos, é a de João Esperança Barroca, na série "Em defesa da ortografia", no jornal Cidade de Tomar.

Exagero? Antes fosse. Todos os dias, e é bom sublinhar todos, surgem exemplos desta novilíngua que se vai insinuando pela má escrita e que, sem ameaçar a língua portuguesa (que já resistiu a tanto e há-de resistir a tudo), ameaça impiedosamente a nossa paciência. Alguns exemplos, recolhidos por olhares atentos, permitem uma avaliação sumária de tais misérias.

Na rua, um sinal de proibição de trânsito ressalva "exceto (por excepto) acesso à escola", bem perto de um outro em que se anuncia "Todas as direcções" (à "antiga", com ). Na RTP, no Jornal da Tarde, lemos este aviso: "Restrições do fim-de-semana impõem novos horários para espétaculos (!) culturais"; enquanto isso, num anúncio governamental de restrições devido à pandemia, lia-se nas projecções atrás do primeiro-ministro: "Limitação de circulação na via pública nos 121 concelhos, ao fim-de-semana a partir das 13h." Um desgoverno no aplicar do Acordo Ortográfico de 1990, que, na caça aos hífenes, impôs como norma fim de semana.

Quem diz hífenes diz acentos. Mão zelosa deve ter achado por bem este título "A ERC pode por (em lugar de pôr) a sobrevivência da TVI" (Visão, 24/11). Quanto a "impatos", "patos" ou "estupefatos", vão surgindo a eito, apesar de se pronunciar claramente o omitido C em impaCto, paCto ou estupefaCto. No artigo "Costa apresenta plano para investir 43 mil milhões até 2030", no Observador (22/11), lá vinha: com menor impato no clima"; o mesmo numa circular de formação escolar, em que se menciona o "impato nos currículos". Já num antigo artigo da Visão ("Quando a Europa vai à Escola"), apesar de aí se escrever "impacto" sem erro, surge esta linda frase: "É sempre preciso patuar com algo que não é ideal", e na TVI (26/2) tivemos ainda esta pérola: Setor bancário está estupefato com esta decisão."

Isto para já não falar dos "artefatos tecnológicos" (numa comunicação sobre Tecnologia Educativa), no julgamento por corrução do ex-presidente Sarkozy" (Lux, 30/11), na "interrução de trânsito" (câmaras do Machico e do Funchal) ou na "queda de helicótero" (por helicóptero) em notícias publicadas em 2019 em jornais de Coimbra e da Madeira.

O impato de tudo isto deixa-nos estupefatos. O melhor é ir a um espétaculo, a ver se passa.

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