terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Caracóis

O jardim é a melhor sala da casa. Não tem janelas, nem portas, nem estores, nem correntes de ar, bibelots que se possam partir, telefone a tocar, televisão a noticiar, toalhas para pendurar, chão que se possa sujar, cadeiras fora do lugar, mesa por levantar, nada. Tudo é natural.

E mesmo quando chove, faz calor ou frio, a "sala" convida a olhar e, como dizia Saramago, "se olhares, vê e se vires, repara". Faço-o habitualmente e tento reparar, para descortinar o "presente" dos gatos que não puxam o autoclismo apenas por não o encontrarem, e para perceber a evolução das flores, para mondar uma ou outra erva que, sem princípios, ocupa indevidamente espaços que lhe não são destinados.

Espreito os seres vivos que por lá se movimentam e dele fazem casa. Não me refiro aos pássaros, nem às abelhas, muito menos aos gatos. Estes são visitantes, não habitantes. Os caracóis, as lesmas, os bichos-de-conta, estes sim, são usufrutuários permanentes e não pagam qualquer renda ou foro, utilizando tudo, sem quaisquer restrições. Os caracóis fascinam-me. Por debaixo daquela indolência que todos conhecemos estão uns seres que executam na perfeição todas as tarefas a que se dispõem, com um planeamento que deverá fazer inveja a muita gente. Tão depressa estão a saborear as folhas das strelitzia, como provam o hibisco, esburacam as folhas das roseiras, da glicínia, da buganvília e de tudo quanto aparece no seu caminho. Quando se sentem cansados ou saciados, "hibernam" numa boa sesta subindo por uma qualquer parede ou estacionando nas pedras de uma janela.

Não consigo perceber como se deslocam tão depressa e percorrem tudo, mas o defeito é meu, que já não enxergo o que devia.

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