Num ano tão difícil como foi o que agora está a acabar, é bom que não esqueçamos de como éramos e o que tínhamos até Abril de 1974, evitando algumas tentações que por aí abundam e para as quais vão aparecendo algumas câmaras de eco.
Estou a acabar o último livro das leituras, muitas, que 2020 me ofereceu. Talvez ainda hoje ou, no máximo, amanhã, chegue à última página. Hei-de lembrar-me dele, com toda a certeza, e é de um autor que nem sequer conhecia. Conta a história dessa prisão sinistra que o Botas instalou em Cabo Verde, onde muitos sofreram, e morreram, às mãos de muitos "animais" sem um pingo de dignidade.
(...)Nessas coisas pensamos para não pensarmos noutras.
O ano de 1945 começou em Abril, logo seguiu para Agosto e terminou abruptamente em Outubro.
Ele perguntou-nos:
- Porque não têm mantas?
- Virou trapo, respondemos.
- E casacos?
- Virou farrapo.
- Prato?
- Furou.
- Colher?
- Quebrou.
- Botas?
- Acabaram.
- E? ...
- Nunca tivemos,
respondemos em coro.
Ele ficou pensativo, pediu licença e saiu. No dia seguinte, ofereceu-nos um aparelhinho de rádio. Muito inteligente. A oferta do rádio não foi uma benfeitoria, mas, sim, uma forma raposa para entendermos a situação.
Pois, em Abril mesmo, ouvimos que Salazar decretou luto nacional pela morte de Mussolini e Hitler, num espaço de dois dias.
Em Agosto, escutámos pelo mesmo rádio a bomba atómica. E depois: "A Guerra acabou", alto e bom som.
Em Setembro, assistimos em directo às manifestações em Lisboa. Nunca imaginei que, na minha modesta condição de ainda vivo, sentiria os ombros a crescerem, a coluna a ficar erecta, e em mim um efémero direito a ter vaidade.
Em Outubro, escutámos o mais surpreendente comunicado do governo português, dizendo para todo o mundo que em Portugal não havia presos políticos. Alguém atirou o rádio contra a parede. Tenho as pilhas guardadas.
1 comentário:
Tempos de escuridão! Haja Luz!
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