sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Premonição

Há 40 anos, neste mesmo dia de Dezembro, era quinta-feira.

Quase no final de mais um dia de trabalho, recebi um telefonema de casa. Devia haver qualquer assunto grave, pois só isso justificava o contacto. Os telemóveis ainda nem sonho eram e as redes sociais nem na imaginação mais pródiga existiam. A única forma de contactar alguém era o velho aparelho colocado na secretária, com uma campainha estridente, de forma a importunar o mais distraído e a obrigar o atendimento.

- O esquentador não funciona. Vê se arranjas alguém que venha cá ver isto!

Conhecia um homem que se dedicava a tudo quanto era biscate - electricista, serralheiro, carpinteiro, canalizador (ou picheleiro, como se dizia em algumas regiões), etc. etc.. O Carlos S. era o "homem dos sete ofícios". Morava na Foz e, como já era noite, era por lá que deveria estar. Fui encontrá-lo num café, à conversa, e logo a sua disponibilidade para ajudar se mostrou. Veio comigo, trazendo a mala das ferramentas que tudo resolviam. 

Em casa, a televisão estava ligada no primeiro canal, um dos dois únicos existentes à época e transmitia um programa qualquer de entretenimento. O Carlos S. tirou a tampa do esquentador, mirou, analisou ao pormenor e descobriu a avaria:

- É um rolo de sujidade que se acumulou e impede o gás de chegar à combustão.

E começou a desmontar para chegar ao sítio, com a paciência que o trabalho requeria. De repente, o programa da televisão foi interrompido e substituído por música clássica.

- Morreu alguém! Se calhar foi o Sá Carneiro!

Não tardou muito a saber-se o que tinha acontecido. A música parou e surgiu um jornalista, pesaroso, a dar a notícia. A avioneta onde seguiam Francisco Sá Carneiro e a companheira, Snu Abecassis, Adelino Amaro da Costa e a mulher, Maria Manuel Pires, António Patrício Gouveia, e os dois pilotos, tinha-se despenhado em Camarate e não havia sobreviventes. O destino era o Porto, para participarem num comício integrado na campanha presidencial do General Soares Carneiro. A corrida presidencial era disputada com o General Ramalho Eanes, que se candidatava a um segundo mandato. Sá Carneiro estava de "candeias às avessas" com Eanes e a campanha tinha como lema "uma maioria, um governo e um presidente", para concretizar o seu sonho de juntar à AD (coligação entre PPD, CDS e PPM) a cadeira de Belém. 

A campanha eleitoral ficou por ali, mas as eleições realizaram-se e Eanes foi reeleito. Sá Carneiro já não pôde ver e foi Francisco Balsemão quem o substituiu, num governo que duraria pouco tempo.

O Carlos S. arranjou o esquentador. Passado algum tempo foi traído pelo coração e acabaram-se os "sete ofícios".

A avaria do esquentador foi fácil de detectar e ficou a funcionar em pleno. 

Passados 40 anos, continua a não haver certezas sobre o que teria acontecido com a avioneta, naquele fim de tarde fatídico. 

Sem comentários: