sábado, 16 de julho de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

(...) Zakaly

O homem tem a cara marcada pela varíola. Fala em voz baixa e tem um sotaque esquisito. Mesmo assim, Zakaly entende o que ele quer dizer: eles vão nos comer. Espremido entre os adultos, Zakaly escuta o homem contar o que entreouviu: assim que todos descerem do barco, já estará tudo pronto. Estão preparando uma grande festa para o governador deles. E o prato principal somos nós.

Então é verdade, pensa Zakaly. As histórias correm de boca em boca, com detalhes diferentes, mas as personagens são sempre os mesmos: seres sinistros, de longos cabelos e caras vermelhas, que se deleitam em comer carne humana. Alguns dizem que eles assam a gente na brasa, outros afirmam que eles nos cozinham em um caldeirão. Muitos dizem que eles têm predileção por crianças, por terem a carne mais tenra. Zakaly se apalpa, imaginando que gosto terão seus braços, sua barriga, suas pernas.

Os adultos, nervosos, perguntam ao homem: mas você tem certeza? O homem balança a cabeça, gravemente. É escravo dos brancos há quase dois anos, entende a língua deles. Viu duas vezes os brancos comendo gente em grandes banquetes, e nem que vivesse dez mil anos se esqueceria disso. Não sabe por que os brancos o pouparam até agora, mas sabe que não vai durar muito e não quer morrer devorado. Diz que há poucos brancos no barco e que, se atacarmos de surpresa e tivermos sorte, conseguiremos matar todos. (...)

Alguns humanos
Gustavo Pacheco

Sem comentários: