segunda-feira, 25 de julho de 2022

Partiu-se

A sua voz nunca se ouvia directamente. Mal o grupo se instalava no largo para a peladinha do dia, as momices distinguiam-se perfeitamente pelos esgares e pelos sons, cavernosos, que se faziam ouvir apesar do chilreio da rapaziada. Nada era entendível. A sua fala, mesmo em conversas normais, era quase estranha, com a língua entaramelada e um som gutural que mais ninguém tinha.

Todos sabiam que detestava miúdos e mais ainda o jogo da bola, que a exasperava deveras.

- Jogo do coice ..., percebia-se com alguma frequência por entre os dentes ausentes. 

Controlava, por detrás das cortinas, tudo o que acontecia no largo. Quando não lhe agradava o barulho ou ouvia alguma exclamação mais apimentada, saía intempestivamente a porta de madeira, atravessando o "relvado", interrompendo o desafio e tentando, trôpega, "chegar a roupa ao pêlo" de algum. Nessa altura, todo o cuidado era pouco porque uma desatenção daria, pela certa, lugar a uma estalada bem assente na cara ou uma queixinha a um dos pais, com a recomendação explícita da necessidade de uma educação mais forte a dar ao rebento, que já era espigadote e merecia-o.

- Serve para aprender. Não dá juízo mas conserva o que tem.

Naquela tarde a bola era nova e de cauchu, coisa rara e nunca vista. O jogo estava delirante e até o dono dela, com a habilidade sempre ausente, corria que se fartava. Havia golos de ambas as equipas, marcados naquelas balizas sinalizadas pelas duas pedras a fazer de postes e com a trave a ser calculada de forma imaginária, em função da altura de cada um dos guarda-redes. A discussão era acesa, sempre que o golo era marcado por alto.

- Foi fora ... passou por cima ... não valeu.

Ela deve ter-se fartado da gritaria e foi para dentro. Não viu nada. Um remate desastrado, a bola bateu, com estrondo, e o vidro ... estilhaçou-se. A voz saiu-lhe clara:

- Quem foi o malandro, que lhe desfaço a tromba.

Ninguém respondeu. A pouco e pouco, pela esquerda baixa, cada um saiu do campo e rumou a casa. As momices habituais foram substituídas por altos berros, mas nenhum se chibou.

- Foste tu?

- Eu?! Eu até estava à baliza ...

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