sexta-feira, 1 de julho de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

Um rinoceronte vindo lá dos confins do mundo para a casa das feras de D. Manuel I, um professor castelhano que estuda a obra de Fernando Pessoa e até com ele fala quando deambula pelos lugares "pessoanos" de Lisboa, e mais um excelente livro do Clube Tinta da China.

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"(...) olhe para esta gente que está aqui à frente à espera de vez para tirar uma fotografia comigo, estes homens e estas mulheres, estas raparigas e estes rapazes que se aproximam de mim, que se põem aqui ao meu lado, sentados ou de cócoras, esperam que o fotógrafo dispare e depois regressam às suas vidas, satisfeitos por se terem imortalizado com o que julgam ser um dos marcos imprescindíveis da cidade, da nação; é evidente que nenhum deles, vamos ser optimistas e dizer que só alguns, sabem verdadeiramente quem sou, e é possível que nem uma das pessoas que desfilaram por aqui ao longo do dia seja capaz de repetir de cor um único dos meus versos, nem sequer os mais fáceis, os primeiros que escrevi, aquela famosa quadra através da qual comuniquei à minha mãe que me mudaria com ela para a África do Sul. Não acha que tenho razão? Acho, acho, respondeu Espinosa depois de acabar de um gole o café, morno pelo tempo de repouso e pela temperatura, ainda quente, mas já um pouco fresca, da rua. Ora bem, continuou Pessoa, estarei eu realmente em condições de pedir a esta gente que me leia? Estarei eu em posição de lhes exigir que conheçam os meus poemas, quando estão a viver um período tão hostil, tão inclemente, tão ímpio, tão propenso ao desacato e à traição em detrimento das artes? Que pensa, querido Espinosa? Os tempos nunca foram fáceis, dom Fernando, respondeu Espinosa, tentando ultrapassar o tímido pessimismo no qual ameaçavam mergulhá-lo as palavras do seu incomensurável contertúlio, , não foram para si, nem foram para nenhum dos grandes génios da literatura universal, a História é sempre convulsa e sempre acontece, não podemos livrar-nos dela. E no entanto escrevemos, interrompeu-o Pessoa, escrevemos como se não houvesse nada mais importante do que encher os nossos papéis, como se nesse empenho em que deixamos a vida residisse o segredo da salvação do mundo, mas no fundo sabemos que não é assim, que nunca é assim, (...)"

O rinoceronte e o poeta
Miguel Barrero

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