quinta-feira, 25 de agosto de 2022

Livros (lidos ou em vias disso)

Há partes da nossa história que, ao invés de serem escondidas, deveriam ser divulgadas, estudadas e bem difundidas por toda a gente, para que todos pudéssemos aprender cedo que há um reverso e que, enquanto povo, temos muitas coisas que nos orgulham mas também temos muitas outras que nos envergonham e delas não nos devemos esquecer.

O volfrâmio, a escravatura, o colonialismo, a crendice, os massacres, a miséria, a subserviência, o poder, a vontade de o ter e a forma de o exercer, causam sobressalto na leitura e vontade de chegar depressa ao fim, digerindo muito bem o que vai ficando contado, num misto de ficção e realidade e com um domínio incrível da forma.

"(...) Foi quando chegaram dois novos reclusos. O jipe estacionara perto da vala e Pedro olhou de soslaio enquanto descarregava as pedras. Conhecia um deles. Era o mulato Toni. O respeitado zelador da Câmara Municipal. Pedro seguia na direcção da pedreira e ouvia os berros e as ameaças do costume. O vocabulário a reduzir-se a categorias simples. A repetições. Começava a ser sempre o mesmo. Dia após dia. Meu filho da puta. Fuba. Cabrão de merda. Esvaziar o mar. Ó-aí-tu-ó-artista. Massapão. Confessar. Britar pedras. Encher as tinas. Secção. Bate-pá, que o gajo fala. É só assinar esta declaração.

À tarde já Toni se integrava nos trabalhos. Pedro cumprimentou-o quando o viu subir na primeira viagem a caminho da pedreira. O zelador da Câmara respondeu com um sorriso. 

E então chegou um carro com o Governador e Xavier Sarmiento. O chofer numa corridinha a abrir as portas para que o senhor Governador da Província e o chefe-geral das milícias não tivessem de dar-se à maçada de puxar um manípulo. Xavier de bengalim.

Ficaram os três a falar em voz baixa e a fazer gestos na direcção da fila de homens que continuava a descer como se fosse um corpo único. O chofer, depois, aproximou-se a olhar uns e outros. Andava numa passada cadenciada e estudada de soldado recruta e tinha divisas de sargento a lustrar nos ombros. A farda assentava-lhe mal. Arranjada à pressa. Mas dava-lhe uma identidade nova, e ele caminhava de cabeça muito erguida e de peito de fora como se fosse já uma outra pessoa, e não o Almeida, o subserviente, sempre às ordens da senhora e das meninas da Roça Bragança, quando a senhora ou as meninas precisavam de motorista para ir à cidade ou de passeio às praias do Sul.

Pedro abrandara ligeiramente o passo na fila a olhar o sargento-chofer e a procurar perceber se havia relação entre a chegada do jipe com dois novos reclusos e a chegada do automóvel com a comitiva do motorista-Almeida transformado em sargento das milícias.

O certo é que desapareceram em direcção ao armazém, e durante algum tempo retomou-se a anormalidade já corrente nos trabalhos da secção de transportar pedras à cabeça para encher as valas. Até que o grupo do Governador apareceu de novo a olhar ao longe, e o subserviente-Almeida se aproximou, e os guardas iniciaram um movimento harmonioso e disciplinado de ordem unida a chicotear reclusos.

- É aquele. (...)"

As pessoas invisíveis
José Carlos Barros
Leya (2022)

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